Maria e Marta

17/04/2018

Há na Bíblia um episódio que só ocorre no Evangelho de Lucas e que, apesar de breve e simples, é daquelas passagens que todo mundo conhece e à qual todos atribuem um significado. Estes meros cinco versículos (Lucas 10:38-42) estão cheios de entrelinhas, de estratos textuais e de outras curiosidades que nos forçam a olhar mais longe e mais fundo para aquilo que nos é aparentemente familiar.

Nesta passagem, Jesus está na casa das irmãs Maria e Marta. Enquanto esta se ocupa dos cuidados com o hóspede, aquela se senta a seus pé para escutá-lo. É impossível não nos solidarizarmos com Marta, já que recai sobre ela toda a responsabilidade de providenciar sozinha uma refeição para Jesus, enquanto a irmã está na sala, no invejável papel de destinatária exclusiva de "cada palavra que sai da boca de Deus".

Olhemos já de imediato para o momento mais importante deste episódio: a resposta que Jesus dá a Marta, depois do desabafo dela, desabafo esse que é uma crítica dirigida tanto à irmã como a Jesus ("Senhor, não te preocupa que a minha irmã me deixe sozinha a servir? Diz-lhe que me venha ajudar!"). O que Jesus lhe responde é: "Marta, Marta, estás preocupada e agitada com muitas coisas; mas necessidade "só" há de uma coisa. Maria escolheu a boa parte, que não lhe será tirada".

Pelo menos, é assim que as palavras de Jesus nos confrontam na edição crítica do texto grego internacionalmente aceito como "standard" (e na qual eu baseei a minha tradução do Novo Testamento). Mas nunca devemos esquecer que o estabelecimento do texto do Evangelho de Lucas é um processo complexo que tem de se basear num universo de 1756 manuscritos que nos transmitem este Evangelho, copiados entre o século IV e a data da primeira edição impressa do texto grego dos quatro Evangelhos (que aconteceu em 1516), sendo que, neste universo de 1756 manuscritos, não há dois exatamente iguais. Se estudarmos este problema, verificamos que, para as palavras com que Jesus começa a responder a Marta ("Marta, Marta, estás preocupada e agitada…"), os manuscritos não nos dão qualquer certeza daquilo que Jesus disse. Em alternativa às palavras que lemos acima, existem ainda seis hipóteses documentadas para as palavras de Jesus, todas com variações.

FOTO: Unsplash

Para lá do problema daquilo que Jesus terá efectivamente dito, há um problema ainda maior: este episódio aconteceu? Jesus esteve mesmo em casa de Maria e de Marta e aconteceu mesmo que Marta ficou toda irritada porque Maria estava sentada a ouvir Jesus "na sala" e se recusou a ajudar "na cozinha"? Como sabemos, mais nenhum evangelista nos fala deste episódio e, previsivelmente, já no século passado os grandes estudiosos do Novo Testamento se dividiram entre aqueles que, como R. Bultmann, interpretaram o episódio como um conto imaginário e aqueles que, como M. Dibelius, argumentaram a favor da sua historicidade.

Quer seja imaginário, quer seja verídico (e o facto de ser plenamente imaginário não o isenta de ser, à sua maneira, plenamente "verídico"…), o episódio parece-me maravilhoso desde a primeira vez que o li por mostrar que (também) há um lugar para a mulher fora da cozinha.

Hoje, quando vemos nas grandes universidades internacionais que alguns dos mais importantes especialistas da Bíblia são mulheres (Karen King, Elaine Pagels, Christine Hayes, Paula Fredriksen e outras), é bom vermos que Jesus afirma neste episódio que o melhor "lugar" é o de quem se interessa por ouvir (e reflectir sobre) as palavras dele.

Mas também é claro que alguém tem de estar na cozinha, senão o jantar não aparece na mesa. Talvez o gesto "cristão" de Maria nesta história tivesse sido dizer à irmã: "Tudo bem, Marta; agora vou eu para a cozinha e ficas tu a ouvir Jesus".

Só que as palavras de Jesus deram-lhe justificação plena para não arredar pé da sala. E sinceramente, por muito pouco cristã que seja essa atitude, eu teria feito o mesmo.

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Frederico Lourenço é escritor, tradutor e professor de grego antigo. Formou-se em línguas e literaturas clássicas na Faculdade de Letras de Lisboa, onde concluiu seu doutorado. Desde 2009 leciona na Universidade de Coimbra. Traduziu do grego a Odisseia, Ilíada e as tragédias de Eurípides, Hipólito e Íon. Sua tradução da Odisseia recebeu o prêmio D. Diniz da Casa de Mateus e o grande prêmio de tradução do PEN Clube Português e da Associação Portuguesa de Tradutores. Pela publicação do Volume I da Bíblia recebeu em 2016 o prêmio Pessoa.

Frederico Lourenço

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