História do olho

18/04/2018

Por Kelvin Falcão Klein

Em seu livro sobre Manet, de 1955 (feito sob encomenda para a coleção Le goût de notre temps, de Albert Skira), Georges Bataille afirma que o pintor foi responsável pelo início da derrocada da retórica da representação na pintura. Em Manet, afirma Bataille, não há emoção, construção de ambiente, apreço pelos detalhes, em suma, não há conteúdo. A pintura é aquilo que é, um estudo de caso do olhar, um experimento. Nesse sentido, a leitura técnica que Bataille faz de Manet resgata muitos pontos de seu romance de 1928, História do olho, que é também um exercício de distanciamento do conteúdo (a violência, o choque, os atos extremos) e exploração do olhar como fenômeno autossuficiente.

Mas quem olha e quem é olhado em História do olho? Em primeiro lugar, o próprio Bataille, dado o forte teor autobiográfico do romance. Ainda mais do que uma autobiografia disfarçada, o romance era para Bataille um esforço terapêutico: ao entrar em análise com o psicanalista Adrien Borel em 1926, Bataille foi incentivado a passar suas angústias, obsessões e fantasias para o papel, com o objetivo de dar-lhes forma e sentido. Como escreve a tradutora Eliane Robert Moraes em seu posfácio: “A criação da História do olho marcou o fim de um silêncio e o nascimento de um escritor”. Com História do olho, portanto, Bataille passa a se ver de forma distinta, tomando para si a máscara do escritor, seu papel social (para além do arquivista da Biblioteca Nacional que ele de fato era).

É desse caráter terapêutico que, em grande medida, decorre o modo objetivo da narração do romance. Bataille apresenta as confissões de um jovem narrador em primeira pessoa, buscando ser o mais claro e direto possível no relato das aventuras do jovem e de sua companheira, Simone. A violência de certas situações parece potencializar esse efeito de distanciamento buscado pelo narrador: “Lembro-me de um dia em que passeávamos de carro, em alta velocidade. Atropelei uma ciclista jovem e bela, cujo pescoço quase foi arrancado pelas rodas. Contemplamos a morta por um bom tempo”.

Essa “contemplação” fria é um dos procedimentos centrais do romance. Os momentos de observação são recorrentes, e a única coisa que permanece fixa em meio a uma sucessão de eventos chocantes é essa postura distanciada, esse olhar que se quer neutro. Há muito de alucinatório e onírico nessas cenas que são observadas pelo narrador, por Simone e outros personagens que encontram. Bataille foi muito cuidadoso em sua revisão do romance, polindo a escrita e o estilo para que nada na linguagem chamasse excessiva atenção. Todo o choque deve estar reservado para as cenas obscenas e escatológicas que incansavelmente surgem a cada página.

Do ponto de vista da crítica, o estilo contido de Bataille é um convite à interpretação e ao esforço de preencher os vazios. Além do já mencionado prefácio de Eliane Robert Moraes, a edição de História do olho conta com outros dois excelentes ensaios: um de Michel Leiris (“Nos tempos de Lord Auch”) e um de Roland Barthes (“A metáfora do olho”). Leiris, por exemplo, apresenta um amplo conjunto de referências que mostra o interesse de Bataille pelo tema do olho e da visão – mencionando o verbete “olho” que o autor escreve, em 1929, para o número 14 da revista Documents. Barthes, por sua vez, de forma mais técnica, porém não menos interessante, mostra o meticuloso encadeamento metafórico de que faz uso Bataille em História do olho: do olho ao ovo e ao ânus; das lágrimas ao escorrimento do conteúdo e esvaziamento das vísceras; e do nascimento do sol à revelação da visão. Em toda a extensão do romance, contudo, uma lição é constante: a inesgotável fonte de desconforto crítico e reinvenção poética que é a literatura.

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Kelvin Falcão Klein é crítico literário, professor de literatura na UNIRIO e autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (Ed. Modelo de Nuvem, 2011). Escreve no blog Um Túnel no Fim da Luz.

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