Quem foi São Paulo?

25/04/2018

A reconstituição da biografia do autoproclamado apóstolo Paulo esbarra de imediato em um célebre problema: a discrepância entre aquilo que é dito sobre ele nos Atos dos Apóstolos e o que o próprio Paulo diz sobre si em suas cartas autênticas. Este problema influi no grau de credibilidade que podemos atribuir aos dados que nos chegaram sobre a biografia de Paulo exclusivamente via Atos dos Apóstolos, uma questão que é várias vezes abordada no volume da minha tradução do Novo Testamento, que acaba de sair no Brasil.

De fato, para muitos estudiosos atuais, a metodologia crítica mais defensável na abordagem à biografia de Paulo consiste em priorizar a versão dele nos pontos em que há contradição entre suas cartas autênticas e outras fontes.

O autor dos Atos dos Apóstolos (o mesmo que escreveu o Evangelho de Lucas, embora em nenhum dos textos se diga que o seu autor se chamava Lucas) é claramente um admirador incondicional de Paulo, a ponto de até estranharmos  o título que, mais tarde, foi dado à obra: seria bem mais apropriado ao conteúdo do livro o título "Atos do Apóstolo".

FOTO: Dave Reed / Unsplash

Paulo é o herói do livro atribuído a Lucas – na verdade, para o autor dos Atos, Paulo é uma figura nada menos que heroica: autor de curas milagrosas (16:16-18), de espantosos exorcismos (19:11-12) e dono de poderes que lhe permitem falar ininterruptamente uma noite inteira ou até ressuscitar um morto (20:7-12). Estes dons extraordinários nunca são referidos (decerto por modéstia) nos textos assinados pelo próprio apóstolo.

Além destas informações, dependemos também do livro de Atos para outras que não encontramos em nenhuma parte. Assim, apenas nos Atos dos que é dito que Paulo era cidadão romano (22:22-29) e que era natural da cidade de Tarso (22:3); que se chamava Saulo antes de passar a ser conhecido como Paulo; ou que estudou em Jerusalém com Gamaliel (22:3) e que tinha a profissão de skênopoiós ("fazedor de tendas", 18:3); só o livro de Atos nos fala da famosa "Estrada" de Damasco.

Assim, aquilo que a maior parte das pessoas pensa saber sobre Paulo baseia-se numa fonte cujas informações não são confirmadas por nada que possamos ler nos textos que nos chegaram diretamente dele. Quem foi Paulo, de fato? Só as suas cartas nos podem transmitir uma pista para percebermos quem ele realmente foi.

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Frederico Lourenço é escritor, tradutor e professor de grego antigo. Formou-se em línguas e literaturas clássicas na Faculdade de Letras de Lisboa, onde concluiu seu doutorado. Desde 2009 leciona na Universidade de Coimbra. Traduziu do grego a Odisseia, Ilíada e as tragédias de Eurípides, Hipólito e Íon. Sua tradução da Odisseia recebeu o prêmio D. Diniz da Casa de Mateus e o grande prêmio de tradução do PEN Clube Português e da Associação Portuguesa de Tradutores. Pela publicação do Volume I da Bíblia recebeu em 2016 o prêmio Pessoa.

Frederico Lourenço

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