Alface sofre assédio moral?

14/05/2018

No começo de maio, as internetes foram tomadas pelos resultados incríveis de um experimento conduzido pela rede de lojas de móveis Ikea numa escola nos Emirados Árabes: duas plantas foram colocadas uma ao lado da outra e os alunos foram instruídos a conversar com ambas. Só que uma delas só receberia elogios e palavras positivas, enquanto a outra seria objeto de bullying. Após 30 dias, a planta acarinhada estava linda e faceira em seu vaso, enquanto o vegetal xingado murchou e quase morreu.

A ação da Ikea inundou minha timeline com “nhons”, “óóós” e _______ (ponha aqui seu emoji de coração favorito). A conclusão geral, claro, é: “Tá vendo? Até criaturas sem sistema nervoso central são capazes de perceber maus tratos e de reagir a eles”. E, se o bullying tem o condão de danificar assim uma planta, imagine o que não fará com a psique do tampinha da escola, do nerd feioso, do quatro-olhos ou da menina gordinha (muito a propósito, em meu tempo eu fui enquadrado em todas essas categorias, exceto possivelmente a última).

Se for verdade, o experimento terá implicações filosóficas profundas: planta tem sentimento? Planta fica magoada? Devo suplicar perdão à jabuticabeira da casa do meu pai toda vez que me aproximar dela com uma bacia, uma escada e a cabeça cheia de más intenções? Planta sente dor? É ético, afinal, criar vegetais com a única intenção de matá-los e comê-los? Seria o experimento da Ikea o xeque-mate nos veganos e em seu insuportável senso de superioridade moral?

A história me fez lembrar Crowley, o demônio canastrão exilado na Terra do livro Good omens, de Terry Pratchett e Neil Gaiman (se você não leu, pare tudo o que estiver fazendo e corra para comprar). Crowley havia ouvido falar sobre os benefícios de conversar com plantas “nos anos setenta” no rádio, e resolveu aplicar o método em casa. “O que ele fez foi ensinar as plantas a temer a Deus. Mais precisamente, a temer a Crowley”, relata uma passagem do livro. De tempos em tempos, sempre que uma de suas plantas começava a perder viço, o demônio desfilava com o vaso na frente das outras e cantarolava: “Digam adeus à sua amiga”. Voltava depois para casa exibindo um vaso vazio. “As plantas eram as mais verdes, exuberantes e lindas de Londres. E também as mais aterrorizadas”, escrevem os britânicos.

FOTO: Unsplash

Os amantes da rúcula, porém, podem almoçar tranquilos: há pouca evidência de que os resultados do experimento na escola sejam reais.

Para começar, não se tratou de um experimento propriamente dito: nenhum grupo-controle, nenhuma replicação, nenhum ambiente experimental especial. O biólogo Carlos Hotta, especialista em relógio biológico de plantas do Instituto de Química da USP, diz que é muito provável que a plantinha achincalhada tenha sido vítima de “viés inconsciente”: justamente por passar o dia sofrendo abusos verbais dos alunos, pode ter sido menos cuidada do que sua contraparte sortuda. Neste caso, o experimento diria muito mais sobre a natureza humana do que sobre os sentimentos dos vegetais.

Leonardo Carnevalli, agrônomo da Universidade Federal de São João Del Rei, também acha que um viés inconsciente seja a explicação mais provável. Mas sugere que pode, sim, haver algo por trás da resposta da planta vítima do assédio moral. E não tem nada a ver com sentimentos ou “más energias”: trata-se de simples estimulação mecânica.

Desde os anos 1970 pelo menos os cientistas sabem que vegetais respondem de jeitos diferentes a estímulos físicos. Em 1973, o biólogo americano Mark Jaffe descobriu que esfregar os caules de algumas plantas, como o feijão, fazia com que elas tivessem seu crescimento retardado. Na última década, diversos estudos vêm mostrando como estímulos mecânicos, como vento e esbarrões, ativam uma cascata de reações bioquímicas e uma série de genes em plantas e fazem com que elas rapidamente mudem a própria forma – desenvolvendo folhas mais ou menos estreitas, por exemplo. Trata-se de uma adaptação de várias espécies a ventanias, furacões e ataques de herbívoros. Plantas que vivem em zonas atingidas por ciclones, por exemplo, podem ter benefício em desenvolver caules menores e mais atarracados para resistir melhor às tormentas, e a seleção natural pode ter agido para favorecer reações rápidas ao vento forte.

Alguns estudos têm mostrado que determinados sons podem causar reações em plantas, por mecanismos que por ora se desconhece. Em 2014, por exemplo, um experimento expôs a planta-modelo favorita dos biólogos, a Arabidopsis thaliana, ao som de uma lagarta mastigando. Constataram que mesmo indivíduos que não estavam sendo atacados elevavam sua resposta imune ao detectar o padrão de vibração idêntico ao som da lagarta, aumentando o teor de alcaloides (substâncias que repelem insetos ao deixar as folhas com um gosto desagradável) nas folhas. Plantas expostas a um som de “controle” do vento não responderam da mesma maneira. Outro estudo, feito na Austrália, mostrou que brotos de ervilha são aparentemente capazes de captar o padrão sonoro de água correndo e fazer suas raízes crescerem na direção da fonte.

Ruídos diversos podem, ao menos em tese, afetar negativamente uma planta. Como quem xinga alguém usa um tom de voz distinto – e frequentemente mais alto e em outro timbre –, o ar pode ser perturbado de maneiras diferentes, prejudicando o vegetal.

Ou seja: uma algazarra de crianças gritando a plenos pulmões “alface, sua linda!” pode mais prejudicial à planta do que, digamos, abordá-la com um prato de salada na mão e sussurrar: “Sabe a sua irmã? Tô comendo.”

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Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como Nature, Scientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou em 2016 pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

Claudio Angelo

Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como Nature, Scientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

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