“Como não escrever uma redação de vestibular”: sobre rancor produtivo e uma oficina

29/05/2018

FOTO: Unsplash

Esse texto começa comigo no primeiro ano do Ensino Médio. Era fã de Harry Potter, Stephen King, O Senhor dos Anéis, todas as séries que chegavam nas minhas mãos. Eu até mesmo chegava a ler durante a aula, o que enfurecia minha professora de física, que dizia que “aula não é biblioteca”. Mas — já diz o meme maniqueísta — sou de humanas, não de exatas.

O problema era que eu tampouco era totalmente bem-sucedida nas humanas. Não que eu fosse má aluna, é claro que não. Nem em física nem em português. Mas minhas “redações dissertativas argumentativas" não eram o que eu gostaria que elas fossem. Vejam bem: eu gostava de escrever. Eu escrevia no meu tempo livre. Escrevia fanfics, escrevia poemas revoltados, escrevia contos que começavam depois do começo e acabavam antes do final. Mas minhas redações vinham com marcações vermelhas longuíssimas, com “confuso”, pontos de interrogação, observações escritas ao lado.

Por gostar de escrever, eu ia perguntar à minha professora por que estava confuso. E ela relia a frase. Então, concluía que não estava confusa. Aumentava minha nota. E eu não aprendia se eu deveria mexer nas minhas frases (se sim, como?) ou se a culpa era da leitora. Apesar de adorar escrever e escrever com alguma intensidade, eu tinha uma resposta mediana. Minha nota em simulados e em vestibulares era em torno de 17. De um máximo de 25, 17 mal dá um 7.

Imagine um adolescente que adora correr e passa o tempo todo na academia. Mas se dá mal na aula de educação física, joga basquete mal. Sim, são inteligências diferentes e tudo o mais. Mas é bastante frustrante para o adolescente, que gosta da coisa “numa área parecida”. Eu só continuei escrevendo porque gostava. Porque se dependesse de vozes “externas”, não receberia muito apoio.

Esta história é bastante normal, inclusive. (Infelizmente) já ouvi diversas versões disso. Professores que achavam que aprender a escrever era copiar de um livro para o caderno. Professores que acham que um texto só poderia ser bom se incluísse exemplos que contemplassem a diferença entre "concerto" e "conserto", ou "retificar" e "ratificar".

E não estou culpando “os professores”, como se fossem entidades superpoderosas que mandam em escolas. É um problema estrutural, que envolve tempo de aula, currículo, a desvalorização das artes e criatividade para a categoria de “hobby”, hábitos (?) de leitura. Nisso entram não só os professores, mas uma questão que vem desde os pais. Nada é muito simples. E, claro, muitos professores burlam esses problemas como podem.

Durante minha primeira oficina de Criação Literária, na PUC-RS, com a ajuda de Luiz Antonio de Assis Brasil, um professor com quarenta anos de experiência ajudando alunos a se expressar melhor, entendi que eu engatava uma frase na outra. Um erro comum, se é que se pode se chamar de erro. O “erro” era cometer frases quilométricas que muitas vezes abarcavam mais de uma ideia. E por serem ideias demais em uma barca (frase) tão pequena, acabava que tudo ficava vago, de argumentação… Bem, confusa. Aprendi a usar frases longas e/ou confusas quando minha intenção fosse essa. Mas quando a intenção fosse clareza, há outros formatos.

Até hoje brinco muito com isso em meus textos. Quem leu o Luzes de emergência se acenderão automaticamente vai se lembrar.

Mas precisei sair da escola para isso.

Fiz um vestibular no ano depois da oficina, quando passei em ciências sociais na UFRGS. A nota foi minha mais alta: 23 de 25 (90%). Fiquei um ano escrevendo ficção e isso melhorou minha redação blábláblá-argumentativa.

Não quero que esse texto seja só uma celebração do meu recalque. Por mais que eu seja uma pessoa ainda furiosa nesse sentido. Insisti no negócio que eu gostava. Mas quantos outros jovens param de escrever porque não tiveram a minha cabeça-dura? Porque não acharam um espaço para se expressar?

Em parceria com algumas unidades do SESC no Rio Grande do Sul, dei a oficina “Como não escrever uma redação de vestibular”. Justo porque queria transformar esse rancor em algo produtivo. Não que eu seja muito fã de conversas sobre energias, mas transformar uma energia negativa em uma positiva. Mudar o que eu podia mudar, ao invés de resmungar pelos cantos.

A ênfase é adolescentes. A ideia da oficina é tirar o susto com a escrita. Mostrar que escrita, apesar de o lado analítico e com-jeito-de-relatório ser necessário, não é só redação. É dar um espaço. Porque desenhar não é só fazer a planta de uma casa. E escrever também não. E se não trouxer melhores escritores, traz escritores com menos medo.

Tive um aluno que no começo da oficina se apresentou como alguém que “não gosta de escrever”. Ao final do primeiro exercício criativo, todos tinham terminado e ele não parava de escrever. A turma inteira ficou esperando ele sair de cima do caderno.

Outra aluna me disse que não achava que escrevia bem. Quando perguntei por quê, ela disse que não sabia colocar vírgulas. Outra achava que escrevia mal porque “as notas de redação eram baixas”.

Ao final de um exercício de escrita, um aluno perguntou se precisava entregar. Eu disse que não. Ele insistiu, perguntou se precisava mostrar para mim o texto. Eu expliquei que, se ele quisesse, poderia ler para a turma, mas ninguém era obrigado. Ele perguntou se eu não queria olhar o texto dele, só para ter certeza de que ele tinha feito.

— Tu quer me mostrar teu texto? — eu disse.

Ele não respondeu.

Eu dei uma risadinha, ele deu uma risadinha. Fui até ele ler um poema cíclico muito interessante, com mais camadas do que ele imaginava que teria. Ele tinha vergonha de querer dizer que queria que eu lesse.

Eu rio quando me perguntam se pode ir palavrão em texto. É muito revelador de um medo de escrever e receber um “confuso”, receber uma correção. Escrever não é sagrado. Até hoje recebo correções dos revisores, coisas bestas, de que me esqueci. Até hoje, inclusive, escrevo histórias que começam depois do começo e terminam antes de final.

Escrever não é colocar vírgulas. Não é ir bem em redação. Não é exibir vocabulário. Não é escrever igual Machado de Assis. Não é nem contar uma história. É uma forma de expressão, das mais antigas. É uma habilidade humana que todos deveriam dominar. É melhor que falar. Este texto, junto com a oficina, é minha mensagem para a Luisa adolescente. Se tu gosta de escrever, escreve. As vírgulas a gente dá um jeito.

***

Luisa Geisler nasceu em Canoas (RS) em 1991. Publicou Contos de mentira (finalista do Jabuti, vencedor do Prêmio SESC de Literatura), Quiçá (finalista do Prêmio Jabuti, do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Machado de Assis, vencedor do Prêmio SESC de Literatura). Seu último livro, Luzes de emergência se acenderão automaticamente, foi publicado pela Alfaguara em 2014. Tem textos publicados da Argentina ao Japão (pelo Atlântico) e acha essa imagem simpática.

Luisa Geisler

Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados, Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges Polesso, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

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