A obscena senhora H – parte 2

11/07/2018

Ilustração de Olga Bilenky

Leia antes: "A obscena senhora H"  — parte 1

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A juventude de Hilda em São Paulo foi estrondosa. Lançou seu primeiro livro de poemas com vinte anos, frequentava os melhores restaurantes, bares e livrarias — onde derramava uma personalidade brilhante entre os intelectuais e artistas paulistanos —, dava entrevistas e aparecia nas colunas sociais. Nessa época, namorou muito, não se prendeu a ninguém, e colecionou paixões que podem ser trilhadas na sua produção lírica. Desde o início, a vida e a obra de Hilda são indissociáveis, e, aos que se queixam de que seu trabalho é hermético, pode-se argumentar que não menos misterioso era seu jeito de estar no mundo. Numa entrevista em 1975, Hilda reclama:

"Há pessoas que falam: 'É preciso ter os pés na terra'; 'Os seus textos não têm os pés na terra', coisas assim. Mas o que significa isso de ter os pés na terra? Será que eles querem dizer que é necessário 'estar antenada' com a terra? Aí fico pensando que é melhor ter os pés na superfície esplêndida do cérebro, é estar atento à poesia que há em tudo e que nem sempre é claramente compreensível."

É, portanto, curioso que uma das queixas mais frequentes contra a obra de Hilda seja exatamente a de “ser difícil”. Se ela buscou comunicar por toda a vida — e comunicar significava uma comunhão com o inexplicável do mundo, com o inapreensível —, recebeu como resposta o silêncio da crítica, a ausência de público, e sua obra lhe parecia permanecer, ao longo dos anos, velada. A personagem que criou para si narrou à exaustão em entrevistas e conversas a história de que, aos 36 anos, a mulher exuberante, cansada da vida social, teve uma revelação ao ler o livro confessional Testamento para El Greco, de Nikos Kazantzákis. Na obra, o autor de Zorba, o grego e A última tentação de Cristo faz uma espécie de balanço místico da vida e afirma que a vivência plena da criação literária exige o afastamento do mundo, porque a literatura deve ser sagrada. É a partir dessa leitura fundadora que Hilda pede parte de um terreno da mãe localizado a poucos quilômetros de Campinas, numa área ainda extremamente rural, e lá ergue a Casa do Sol.

A construção impressionante que lembra um mosteiro — com um pátio interno cercado por corredores em arco e circundada por um jardim plantado pela autora na companhia de amigos e do então marido Dante Casarini — foi toda projetada por Hilda para o recolhimento do burburinho do mundo. É nesse lugar que ela cria seu templo literário de estudos e produção, casa aberta para abrigar amigos e escritores, espécie de utopia poética propícia à criação. A leitura de Kazantzákis inaugura também uma fase mística, própria, cheia de idiossincrasias, que modelaria seu pensamento a partir dali, e que seria a pedra fundamental da Casa do Sol.

É lá que surge a parte mais importante da produção de Hilda. É lá que ela cria suas personagens. É lá que, a partir de um único verso que surge “como uma iluminação”, ela desenrola todo um poema, todo um livro. É lá, num cotidiano surpreendentemente regrado — em meio à farra espiritual que os círculos similares ao de Hilda viviam na época —, que ela constrói sua rotina de trabalho, sua leitura todas as manhãs, o exercício da escrita, o humor entre os amigos. É lá que a ficção se faz presente, sua prosa estranha, inédita, rascante, sonora como seus poemas, indissociável deles. É lá, nessa casa térrea, que nasce, debaixo da escada, Hillé, protagonista de A obscena senhora D, sua personagem mais marcante.

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Continue a leitura: "A obscena senhora H"  — parte 3

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Ana Lima Cecilio é formada em filosofia pela USP e trabalha no mercado editorial há quinze anos. Foi editora do selo Biblioteca Azul, no qual publicou autores como Balzac, Beckett, Elena Ferrante e Hilda Hilst, e foi uma das organizadoras das obras completas de Machado de Assis pela Nova Aguilar. Hoje é editora da Carambaia e prepara a biografia de Hilda para a Companhia das Letras.

Ana Lima Cecilio

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