A obscena senhora H – parte 3

19/07/2018

Ilustração de Olga Bilenky

Leia antes: "A obscena senhora H"  — parte 1, parte 2

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O livro A obscena senhora D, publicado em 1982, é fundamental dentro do grande sistema arquitetado por Hilda Hilst. E a palavra “sistema” aqui não é leviana: Hilda concebeu toda sua obra começando com os poemas de Presságio (1950) e foi capaz de encerrá-la num anúncio límpido e claro — em 1999, numa entrevista à Marilene Felinto na Folha de S.Paulo, ela afirma: “São tantos livros, mais de quarenta, eu fiz tudo que pude fazer”. Para quem acompanha esse caminho, há momentos de muita nitidez desse ato intencional de Hilda, cuja produção, como a de seu grande inspirador, Kazantzákis, segue um traçado circular, coeso, sonoro — como um poema. Localizado aproximadamente no meio desse círculo, A obscena senhora D se apresenta ao leitor como um momento de particular inspiração de Hilda: ali estão os mais belos trechos de sua prosa, madura, compacta; as construções poéticas, as emoções mais decisivas das personagens; os diálogos mais assertivos de uma autora que buscou traduzir em peças de teatro a sua veemência discursiva. Mas A obscena senhora D não é representativa apenas na forma.

O livro cristaliza os temas fundamentais da autora: a busca do sagrado, o elogio do amor, a ode à literatura, o pânico metafísico, o humor refinado. Hilda o publica aos 52 anos, já íntima da escrita em prosa, segura de si e do que está fazendo. Nos diários, anota nas margens: “Trabalhei hoje na Senhora D. Vai ficar bom”. Com toda essa consciência — e sobretudo com a sensação de obra perfeita —, é natural imaginar sua decepção com a recepção tímida, o fogo de palha, uma ou outra resenha. Nos diários posteriores à publicação, anota: “Não aconteceu nada”.

E o que seria, para a escritora, “acontecer algo”? Ela já tinha cancha suficiente para saber que não era fácil se bancar com literatura no Brasil.

Se Hilda viveu profundamente o microcosmo da Casa do Sol, com sua figueira exuberante que, segundo a lenda, realizava desejos, ela nunca deixou de experimentar uma relação de amor e ódio com o mundo lá fora. A crônica falta de dinheiro, a eterna disputa com os editores, a constatação na pele da dificuldade de viver de poesia, o assombro com a epidemia de aids nos anos 1980 — que levou amigos seus —, tudo isso estava presente nas noites de conversa na chácara. Politicamente, em sua produção literária, Hilda nunca empunhou bandeiras, mas não deixava de se comover com o sofrimento humano. Sua manifestação engajada, no entanto, aparecia nas crônicas, quando, sem efetivamente erigir uma postura mais coesa, se mostrava indignada com a “bandalheira” do país. No fim dos anos 1960, talvez o momento em que o mundo mais impôs sua presença na Casa do Sol, a autora passou a escrever peças de teatro com a firme convicção de que, assim, daria voz a seu protesto e seria ouvida. A tentativa deu em água, e apenas uma das oito peças foi montada em São Paulo, pelo diretor Rofran Fernandes, sem grande repercussão. Não é justo, entretanto, dizer que Hilda se isolou, como a acusaram, na “torre de marfim” da literatura. A isso, ela respondia, feroz: “isto aqui está muito mais para uma torre de capim”.

A dificuldade de respostas e o obstinado anseio de se comunicar a levaram a inusitadas experiências extrassensoriais. Inspirada em relatos de físicos que, com um gravador, procuravam vozes de “outras dimensões” dispostas a se manifestar em ondas de rádio, Hilda passou muito tempo com seu microfone apontado para o espaço e o silêncio da noite. Ela levou o experimento muito a sério, discutindo com especialistas, e teve um mínimo sucesso — nas gravações é possível, com algum esforço e uma boa dose de fé, ouvir sussurros que bem de longe lembram palavras. Sua convicção a levaria ao programa Fantástico, em 1979, e contribuiria definitivamente para o imaginário de uma autora um tanto amalucada, que constrói seu misticismo a partir de um sincretismo particular e bem-humorado: “eu acredito em tudo”. Na Casa do Sol, convivem em plena harmonia ecumênica imagens de santos, mandalas, mapas astrais, amuletos diversos, cristais, pirâmides. Tudo interessava, mas nenhuma crença era primordial.

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Ana Lima Cecilio é formada em filosofia pela USP e trabalha no mercado editorial há quinze anos. Foi editora do selo Biblioteca Azul, no qual publicou autores como Balzac, Beckett, Elena Ferrante e Hilda Hilst, e foi uma das organizadoras das obras completas de Machado de Assis pela Nova Aguilar. Hoje é editora da Carambaia e prepara a biografia de Hilda para a Companhia das Letras.

Ana Lima Cecilio

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