Em tradução (O Fim?)

26/10/2018

 

Eu estou escrevendo pra você há mais de quinze anos. Eu escrevo livros dos outros pra você. 

Eu sou tradutor.

Eu ensino livros e ideias dos outros há vinte anos. Eu sou professor.

*

Eu estou escrevendo isso aqui às 19h40 de uma quarta-feira, dia 24 de outubro de 2018. Um momento em que, pela primeira vez na minha vida adulta, eu passo a ter medo de não poder escrever, de não poder dar aula, de não poder falar e fazer o que quero. Um momento em que estamos todos diante da possibilidade do inominável.

E diante da possibilidade do inominável, da viabilidade concreta do impensável, a coisa mais triste é que ele vence antes, pois se instala sem pedir. Antes de pisar por opressão, ele já dói em depressão. Estamos todos, aqui, neste estado. Vivendo uma melancolia pré-depressiva. Pasmada, perdida, contrita.

E diante desse estado, a gente começa a achar que nada vale. Começa a pensar que essa atividade, escrever livros dos outros, escrever os próprios livros, escrever aqui, agora, pra você… ensinar… pensar… a gente começa a achar que nada disso faz sentido diante do enorme que pode vir a cobrir tudo. Diante do choque.

Que diferença fazem os poemas? Romances?

Que diferença traz uma frase bem feita?

Que diferença…

Quando a gente está de frente pra noite, que diferença faz um fósforo?

*

E o monstro vence antes de nascer. Vence porque ameaça te convencer da futilidade da nossa vidinha pequena, mas ativa. Vence porque te faz questionar a nossa validade como agentes, pessoas.

Eu estou assim.

Triste. Pasmado. Contrito. Perdido.

Chocado.

*

Mas eu acabo de vir da defesa de titularidade de uma colega de que eu gosto muito na universidade. E ao mesmo tempo em que me assolava essa sensação que tem sido recorrente (o que é que a gente está fazendo aqui discutindo essas coisas?), eu também pensava que é absolutamente necessário salvaguardar esse mundo em que alguém é capaz de ficar com um nó na garganta ao dizer “por que é que o R e o L são os últimos?” pensando nos enigmas da aquisição de fonemas pelas crianças falantes nativas de português. Do Brasil. 

E eu falava com o meu irmão esses dias e lembrava de um dos nossos livros preferidos: “a gente tem que cuidar do nosso jardim”. E esta mesma editora, através de seu fundador, se manifestou de forma direta, corajosa e… linda, quanto ao medo que nós todos estamos sentindo.

*

Ainda eu vejo o escuro. Mas já duvido.

*

E eu lembrei, graças a outra colega que eu adoro, de ver o documentário Chuck Norris contra o comunismo. Incrível, em bem mais de um sentido. Tente ver. Tem na Netflix. Por enquanto.

É a história de Irina Nistor, a mulher que traduziu e dublou sozinha cerca de 3 mil filmes na Romênia comunista. Num período em que filmes eram proibidos quando, por exemplo, mostravam mesas muito fartas, que poderiam passar uma imagem “enganosamente favorável” do mundo capitalista. 

Quando os aparelhos de vídeo-cassete eram ilegais, Irina foi o Doutor Jivago.

Foi o Karatê Kid.

Irina foi Nero, foi Jesus.

Quando dublar era subversão, Irina foi Chuck Norris contra o comunismo.

Ela era apenas uma tradutora. Nas suas próprias palavras, só queria ver os filmes.

Mas os entrevistados são unânimes em afirmar que a multidão que tomou as ruas de Bucareste no fim de 1989 estava agindo baseada também numa noção de heroísmo derivada daqueles filmes tolos que o regime não queria que eles vissem. A multidão agia movida também por todo um horizonte de possibilidades entrevisto nos cenários, percebido nas roupas e nos discursos daqueles filmes bobos. Daqueles filmes que, como dizem eles, só eram “originais” se tivessem a voz aguda de doamna Irina Nistor. E ao fundo os sons de sua xícara de chá.

Irina era somente uma tradutora, diante do terrível. Em plena, plena noite. Mas ela fez o que podia, diz que fez a sua parte porque oamenii au nevoie de pove?ti.

*

E não se preocupe. Se você não entendeu, eu traduzo.

Porque é isso que faço. Eu escrevo coisas. Eu tento ajudar a entender. Eu escrevo livros dos outros pra você. Eu sou professor. Eu sou tradutor.

E hei de continuar.

Porque as pessoas precisam de histórias.

*

Toma um fósforo. Não queime. Enxergue um pouco melhor.

 

***

 

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

 

Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

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