Semana da Consciência Negra: Cris Blue #minhahistoria

23/11/2018

 

No último post do especial #minhahistoria, uma celebração da Semana da Consciência Negra, a convidada é Cris Blue, mulher negra que enfrentou muitos desafios até se tornar funcionária da FAPESP e membro da Instituição Ilú Obá De Min – Educação Cultura e Arte Negra.

Convidamos também todas as nossas leitoras a contarem suas histórias via Twitter, Instagram e Facebook acompanhadas da hashtag #minhahistoria.

 

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Minha história, por Cris Blue

Minha história começa bem antes de eu nascer. Faço parte da existência e resistência de Reis e Rainhas que foram sequestrados no Continente Africano e trazidos pra essas terras distantes dentro dos porões dos navios negreiros e que conseguiram sobreviver, dando condições pra que hoje eu pudesse contar um pouco da minha história. Filha de pai e mãe baianos, Vitorio e Idalina, que, como milhares de outros nordestinos, migraram para São Paulo nos anos 50, em busca de um futuro melhor. Nasci em agosto de 1964, sendo a caçula (junto com uma irmã gêmea) de uma família de nove irmãos, mas não tive nenhuma regalia por isso.

Nome: Maria Cristina.

Quando nasci, a situação entre meus pais não era das melhores — nem econômica, nem (e muito menos) de afeto. Meu pai havia saído de casa, deixando minha mãe sozinha e com todas as responsabilidades de criar e educar todos nós. Não foi nada fácil, mas com amor (do jeito que ela podia passar), luta e perseverança, minha mãe conseguiu dar conta. Nasci em São Miguel Paulista, mas passei a infância e juventude no Itaim Paulista, bairro periférico da Zona Leste de São Paulo. Me mudei de casa inúmeras vezes ao longo da juventude, pois não tínhamos condições de ter casa própria. Passei fome muitas vezes (cheguei a desmaiar na escola por conta disso), desejei muitas coisas que não poderia comprar. Porém, como toda criança pobre, sempre sonhava com um dia melhor, o que costumava alimentar minha alma.

Estudei em escolas públicas e, como na época não havia escolas particulares, todas as crianças e adolescentes do bairro, estudavam nos mesmos locais. Fui muito discriminada nesse período da infância: sofri racismo (hoje dizem que é "bullying"), inclusive por professoras. Nessa fase, por ser preta, pobre e filha de mãe “largada” (era esse o termo usado quando as mulheres não tinham seus maridos), me chamavam de neguinha (de maneira pejorativa), cabelo de “bombril”, cabelo de palha de aço, Joãozinho (minha mãe trabalhava muito e não tinha condições, paciência nem tempo para cuidar do meu cabelo crespo, então o cortava bem curto), Garrincha (por ter pernas tortas). Também não era convidada para brincar, dançar em festas juninas ou muito menos ter aproximação com outras crianças, já que não era bem vista por suas mães. Mas, nessa época, eu achava isso normal. Sofria quieta e só fui perceber e entender que tudo que passei era por conta da minha negritude na adolescência, quando comecei a trabalhar, porque minha família não conversava sobre questões raciais.

Por necessidade — para ajudar nas despesas de casa e para que eu pudesse ter as coisas que gostaria de ter —, comecei a trabalhar muito cedo. Exerci diversas atividades ao longo desse percurso: faxineira, vendedora, escriturária, telefonista... Tive que me adequar para alguns desses trabalhos. Por exemplo, precisei alisar o cabelo, já que o perfil solicitado nos anúncios de vaga era de “boa aparência”  — o que nós, mulheres negras sabemos até hoje muito bem o que isso significa.

Por volta dos 15 anos de idade, trabalhando na área central de São Paulo, conheci o movimento negro e os bailes black, e aí que comecei a entender a minha negritude. Conheci a política e até participei dos movimentos pelo fim da ditadura e pelas Diretas Já. Me apaixonei por volta dos 16, e aos 21 me casei na esperança de ter um romance como no cinema. Mas não foi bem assim.

Sofri assédio moral por muitos anos até conseguir dar um basta e me libertar desse relacionamento abusivo. Do casamento, nasceu minha única filha, Florence, minha melhor parte, amiga e companheira. Ela me deu sentido pra recomeçar e não desistir dos meus sonhos que por um tempo ficaram adormecidos. Hoje, aos 54 anos, continuo na luta e na resistência. Trabalho como analista administrativo na FAPESP — voltei a estudar depois dos 40, me formando em administração de recursos humanos. Sou também compositora, sambista, percussionista, ativista e milito junto à várias causas sociais, em prol das mulheres, principalmente das mulheres negras. Há 13 anos, faço parte da Instituição Ilú Obá De Min – Educação Cultura e Arte Negra, um projeto que contribuiu para o meu empoderamento, sendo  referência pra centenas de mulheres que passaram por lá em todos esses anos de existência. Foi lá onde aprendi a tocar agogô e hoje ensino as mulheres que chegam, assim como eu cheguei um dia nesse espaço, a tocar um instrumento de percussão, mas acima de tudo a ajudar essas mulheres a serem protagonistas das suas próprias histórias de vida.

Relembrar fatos, mexer com memórias... Ora lembranças boas, pois tive muitas conquistas ao longo desses anos, outras nem tanto. Mas é assim que aconteceu, sigo resistindo e existindo dentro de todo esse processo que é a vida! Salve as minhas ancestrais! Salve minha mãe e minha filha! Salve todas as mulheres negras que me inspiram todos os dias pra seguir adiante essa caminhada!

 

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Cris Blue nasceu em São Paulo, tem 54 anos e trabalha como analista administrativo na FAPESP. Integrante do Ilú Obá De Min, é compositora, sambista e percussionista.

 

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