São dez horas, obedeçam à lei!

19/12/2018

Por Eric Novello

Foto: Shutterstock

 

Texto de Eric Novello, autor de Ninguém nasce herói, parte de sua série Abismos.

***

A sirene toca na cidade: são dez horas, obedeçam à lei! Corram para casa e ouçam atentos o sermão do dia transmitido via redes sociais. Cubram as musas do pescoço às canelas. Escondam o sexo, desfilem pudores, proíbam o beijo. Recitem em voz alta diante do espelho as normas da hipocrisia de bem.
 
Mas enquanto o relógio não vira...
Dancem em passos desengonçados pelas ruas,
Se beijem em cores e combinações infinitas,
Entrelacem os dedos, os corpos e as línguas,
Repudiem sem dó a histeria do ódio,
Gritem o amor a plenos pulmões.
 
O apresentador avisa na televisão: são dez horas, obedeçam à lei! Lubrifiquem a razão com gás de pimenta. Coreografem a renúncia aos próprios direitos. Ajoelhem-se e beijem a bainha das togas. Pintem de cinza os limites do afeto.
 
Mas em cada minuto até lá...
Resgatem o verde e amarelo dos alienados delirantes,
Desnudem ao ar livre a origem do mundo,
Cubram os tijolos de tinta e arte,
Recitem ao sol a poesia mais longa,
Mudem no sopro a direção do vento.
 
A pregação começa na rádio: são dez horas, obedeçam à lei! Troquem seus cérebros por novelos macios de lã. Cultuem o medo em mensagens toscas de zap. Engulam mentiras na velocibyte da luz.


Mas até um segundo antes...
Ateiem fogo aos caçadores de bruxas,
Passeiem com Darwin no paraíso,
Retornem os mitos às poças de lama e barro,
Salvem os livros do meio das chamas,
Leiam em voz alta as páginas flamejantes.
 
O espantalho sorridente discursa na esplanada: São dez horas, obedeçam à lei! Comprem suas armas de brinquedo em dezessete modelos coloridos. Puxem os sacos camuflados de dinheiro. Pisoteiem com botas de borracha as sementes de discernimento. Preguem a paz espalmada na cruz.
 
Mas até um minuto antes e em cada minuto depois,
Estilhacem preconceitos e vidraças,
Derrubem do trono os tiranos,
Perpetuem no toque o afeto,
Esvaziem as camisinhas das máquinas gratuitas do metrô,
Arranquem do relógio os ponteiros,
Matem o medo de fome.

***

Eric Novello é escritor, tradutor e roteirista com formação no Instituto Brasileiro de Audiovisual. Nasceu no Rio de Janeiro em 1978 e mora em São Paulo desde 2007. É autor de Exorcismos, amores e uma dose de blues(Gutenberg, 2014), A sombra no Sol (Draco, 2012), Neon azul (Draco, 2010) e Histórias da noite carioca (Lamparina, 2004). Em 2017, publicou pela Seguinte Ninguém nasce herói

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