Minha coisa favorita é letras

18/03/2019

 

Li numa entrevista que, graças a algum monstrinho da profana providência, ainda nas primeiras páginas de Minha coisa favorita é monstro Emil Ferris se deu conta de não desenhar sobre folhas de papel pautado. O visual caderno de colégio era uma coisa que ela queria no quadrinho, que é o diário ilustrado de sua protagonista, a detetive e lobismoça de dez anos Karen Reyes. Por isso, ela havia começado a desenhar em papel que imitava um caderno.

Ferris se deu conta que seria uma dor de cabeça editar seu trabalho se, a cada alteração, tivesse que reconstruir as linhazinhas azuis de papel pautado. Começou a desenhar em papel branco e deixou para aplicar o pautado no computador.

Ela provavelmente também se deu conta que, se não fizesse isto, Monstro seria quase intraduzível. Letreiristas do mundo inteiro teriam que apagar e refazer as linhazinhas azuis, o que somaria meses de trabalho e desistência de muita editora. E Monstro não teria sido lançado em espanhol, italiano, alemão, francês e, agora, em português. E, por conseguinte, não ganharia o prêmio de HQ mais importante do mundo, o Fauve d’Or do Festival d’Angoulême, que só premia o que sai em francês.

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Perguntei ao Américo Freiria quanto tempo levou para criar fontes, redesenhar e aplicar letreiros, refazer hachuras, tratar imagens e diagramar Minha coisa favorita é monstro. “Dois meses”, ele respondeu. O trabalho foi dividido com a filha Jessica.

Também levei dois meses para traduzir Monstro. Mas, como é comum a muito freelancers, foi uma tradução feita concomitante a outras 37, malabarizando deadlines e aproveitando o tempo para resolver e aperfeiçoar detalhes no subconsciente. Se eu contasse o meu tempo dedicado exclusivamente a Monstro nestes dois meses, daria uns vinte dias.

Perguntei ao Américo se os dois meses dele também tinham sido entre outros trabalhos. “Não”, ele respondeu. “Do início à entrega, foram dois meses praticamente concentrados na Emil.” E são dois meses que se percebe.

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Independente das layers de caderno pautado prontas para aplicação no Photoshop, Monstros tem vários desafios na tradução/ letreiramento. Emil Ferris escreveu todas as letras à mão. Refazer um quadrinho à mão, na tradução, além de caro e demorado, cria outro perrengue na hora de editar – qualquer alteração sai, de novo, cara e demorada. Editoras estrangeiras, então, criam fontes a partir da letra manuscrita do autor. Américo criou quatro fontes baseadas na letra da sra. Ferris.

Mas foi só o começo. Além do texto padrão do livro, há onomatopeias, que não seguem fonte alguma. Há letreiros, há nomes de restaurantes e marquises de cinema e cartões que Karen escreve para os coleguinhas. Há as capas de revista de terror que Karen redesenha no seu caderno: “RENOMADAS CRIATURAS DO CELULOIDE”, “ESPECTRO”, “PAVOR” e sua preferida, a “MEDONHA”. É comum, aliás, editoras estrangeiras não redesenharem onomatopeias, letreiros etc. Fica tudo como no original. No caso da edição brasileira, não. Tudo foi refeito à mão por Américo e Jessica.

Mas ainda não chegamos na parte mais complicada. “O problema não está nas letras, mas na superfície das letras”, explica Américo. Cada vez que se apagava um “GHASTLY” para escrever “MEDONHA”, era preciso redesenhar linhas, hachuras, texturas, ajustar grão e cores atrás e em volta da palavra. E vá fazer linhas, hachuras, texturas, grão e cores parecidas com as da Emil Ferris para você ter uma ideia do empenho.

“Uma das grandes dificuldades foi reproduzir a angulação das hachuras dinâmicas sob os textos, que, em alguns casos, ainda tinham várias cores. Às vezes não tinha como fazer remendos e manter a naturalidade, então foi preciso refazer todo o fundo”, explica Américo. “Conforme eu e a Jessica fomos nos familiarizando com o estilo da Emil, percebemos que era necessário aplicar outra técnica para criar mais identidade. Pelo menos uma meia dúzia de artes foram refeitas completamente do zero antes de entregar a primeira prova para a editora.” Assim, houve páginas que tomaram, por si só, dois dias de trabalho. O álbum tem 416.

“O trabalho do Américo é incrível e muito amplo. Além de ter um olhar técnico ele possui a sensibilidade de recriar as artes originais preservando o estilo da autora”, diz Helen Nakao, supervisora de produção da Quadrinhos na Cia.

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Américo Freiria tem 55 anos e trabalha há mais de 35 com artes gráficas. Pegou a transição do paste-up para o Photoshop. Criou seu primeiro arquivo de fonte em 2001, para o infanto-juvenil Cleópatra e sua víbora. Já trabalhamos juntos em uns cinco álbuns da Quadrinhos na Cia. Monstros não foi o mais complicado. “Aquele dos Crumbs, Desenhados um para o outro, foi você que traduziu?” Foi. “Ali sim foi uma dificuldade lidar com as hachuras e paisagens ao redor dos balões, com as técnicas que variavam ao longo dos vinte e tantos anos de histórias na coletânea.”

Ele não refaz somente as letras de autores estrangeiros. A letra de Odyr em A revolução dos bichos, por exemplo, é uma fonte criada a partir da letra manuscrita de Odyr – com um abracadabra técnico que faz o desenho de cada letra variar a cada ocorrência. “O ‘A’ não sai sempre o mesmo ‘A’, pois há três a seis variações aleatórias do ‘A’”, explica. Agora ele está trabalhando em um programa que vai fazer o que ele chama de “formatação variável do texto”, para passar ainda mais a imprecisão do manuscrito.

Minha coisa favorita é monstro vai ser o primeiro trabalho que ele assina com a filha Jessica, de 20 anos. Ela já ajudou em outros projetos, mas este é o primeiro em que teve uma contribuição grande. “Além de me acompanhar há tempos, ela fez algumas ilustrações e traz coisas novas, tipo fazer as hachuras na mesa digitalizadora”. Você não usa mesa digitalizadora, Américo? “Não, prefiro o mouse. Eu sou do tempo em que ‘mesa digitalizadora’ era o scanner.”

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Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Foi editor convidado de O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 (editora Narval). Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Garota-Ranho Minha coisa favorita é monstrohttp://ericoassis.com.br/

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Érico Assis

Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o Blog com textos sobre histórias em quadrinhos. É autor de Balões de Pensamento (Balão Editorial), uma coletânea de textos lançados aqui no Blog. Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Minha coisa favorita é monstro e Sapiens. http://ericoassis.com.br/

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