A questão fundamental da escrita

26/03/2019

 

É claro que temos “ser ou não ser”. A questão fundamental da filosofia, segundo Camus. Mas saindo um pouco de livros e pensando em botecos contemporâneos, há uma pergunta ainda maior, ainda mais dolorosa, em relação à existência e à escrita. Pode-se ensinar a escrita? Pode-se aprender a ser um bom escritor? E tanto quanto a questão fundamental, as respostas variam.

Minha experiência pessoal, a única que realmente domino a respeito do assunto, não me ajuda muito. Eu escrevia quando (mais ainda) nova, os poemas, os diários, as fanfics, os sem-gêneros da adolescência. Minha professora na escola não gostava do que eu escrevia, mas eu gostava de escrever. Quando saí do ensino médio, eu gostava de escrever. Não gostava da ideia de letras ou jornalismo. E, talvez por conta de ainda ter o sistema educacional mais pragmático incutido em mim, imaginava que pudesse estudar a respeito de escrever. E se estuda com um professor. Porque tudo que você quer aprender, você precisa de um professor. Era o que eu achava.

Entrei numa oficina de criação literária na PUC-RS, uma das mais tradicionais do país, em que Luiz Antonio de Assis Brasil dá aula há mais tempo do que eu tenho de vida. Oficina #1. Já com Contos de mentira publicado em mãos, entrei numa oficina porque gostava dos professores. Comecei a me envolver com um dos colegas de oficina, o que me fez ficar. Devo ter produzido dois textos em seis meses de aula. Oficina #2. Fiz algumas oficinas de tradução, mas mais por interesse pessoal, e com outras dinâmicas. Durante o mestrado, uma matéria de contos me forçou a escrever e ler tanto que comecei a calcular quanto tempo podia demorar no banho. Mais que oficina #3, um treino militar. Ainda no mestrado, uma matéria que era uma ideia mais de workshop, em que cada um trabalharia em seu próprio projeto. Porém com os gatilhos, leituras e dinâmicas de uma oficina tradicional. Oficina #4.

A ideia de oficina de criação literária é grande. Em algum ponto de 1 a 4 , comecei a dar as minhas próprias. Algumas mais livres, de desbloqueio criativo. Algumas mais estruturadas, com um pouco de teoria. Uma se chama “Como não escrever uma redação de vestibular” e é focada em adolescentes. Nela, martelo que escrever não é só introdução (um parágrafo, responder a pergunta), desenvolvimento (um a dois parágrafos, um olhar positivo, outro negativo), conclusão (um parágrafo).

Durante o mestrado, durante o período de treinamento militar em que cortei o cabelo porque me pouparia tempo secando, houve outra coisa. Coisinha. Pequena. Eu estava terminando o De espaços abandonados, meu romance lançado em 2018. Dentro de tantas aulas, teoria dum lado, discussões sobre “o quanto o autor deveria saber”, “onde mostrar e onde dizer”, era difícil pensar na estrutura de um livro de ficção. Escrevi um manual de escrita, que, preenchido, era o romance. Um livro dentro de um livro. Era um manual irônico (para o leitor) e contradizia a própria narrativa. O manual dizia que o autor precisava saber o final de tudo. A protagonista, Maria Alice, não só não sabe o final como apresenta umas vinte possibilidades dele baseada no que ouviu alguém conversar no ônibus.

Escrever, ler, ficção é pouco objetivo. É difícil falar em absolutos. Adjetivos sempre devem ser cortados. Nunca use advérbios em “mente”. Aqueles que sabem muito têm síndrome do impostor, sentem que sabem pouco. Por outro lado, os mais pragmáticos se enchem do efeito Dunning-Kruger: sabem tão pouco que acham que já sabem o que precisam.

Por isso que quando soube de um dos lançamentos deste mês — o Escrever ficção da autoria de Luiz Antonio de Assis Brasil —, imediatamente pedi um exemplar à Companhia das Letras. Pequenos privilégios.

O acerto de Assis sempre me pareceu traçar esta linha entre impostor e Dunning-Kruger: ter certa segurança para o que funciona, mas sempre aberto aos alunos que pensam um pouco fora disso. Ajudar o autor a ser a melhor versão de si mesmo. A versão mais precisa, mais eficaz, daquilo que o autor quer dizer/mostrar. Isso como professor, em aula, em momentos de interação entre alunos e texto.

No entanto, ao receber, eu ia apenas folhear o livro. Entre observações cuidadosas e anedotas bem escolhidas, terminei trezentas páginas. O desgraçado conseguiu fazer disso uma leitura gostosa. 

Minha resposta pra “pode-se ensinar a escrever?” sempre foi simplista. Pode-se ensinar da mesma maneira que se pode ensinar a desenhar, a dançar. Existem maneiras de “limpar um movimento” na dança ou “acentuar uma perspectiva” no desenho. E na escrita também.

Como fiel membra do clube da Síndrome do Impostor, não sei se há como formar um escritor. Pelo menos, não da maneira que se forma um contador. Se bem que até mesmo na contabilidade, há aqueles que se destacam na… bem, engenhosidade. De qualquer forma, não sei se sei. Mas se tem quem saiba, é o Assis.

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Observação blogueirinha: voltamos com a parte final do “Internet me pergunta” no mês que vem. Porque foi isso que combinamos, internet. Keep your knickers on.

 

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Luisa Geisler nasceu em Canoas (RS) em 1991. Publicou Contos de mentira (finalista do Jabuti, vencedor do Prêmio SESC de Literatura), Quiçá (finalista do Prêmio Jabuti, do Prêmio São Paulo de Literatura e do Prêmio Machado de Assis, vencedor do Prêmio SESC de Literatura). Seu último livro, De espaços abandonados foi publicado pela Alfaguara em 2018. Tem textos publicados da Argentina ao Japão (pelo Atlântico) e acha essa imagem simpática.

Luisa Geisler

Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados, Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges Polesso, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

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