Eu sou homem.
Lamento ainda ser meio que o tradutor de Ali Smith no Brasil (ela, tão consciente e tão valorizadora de sororidades). E ao mesmo tempo agradeço a outra mulher, Maria Emilia Bender, que teve a sensibilidade de perceber que eu ia me acertar com essa autora.
Estive essa semana lendo um texto sobre tradução e feminismo, de Gayatri Chakravorty Spivak (melhor nome de todos os tempos!), com os meus alunos da graduação. Na verdade, com as minhas alunas, majoritárias na turma.
Coincidentemente, dias antes uma orientanda de mestrado (oi, Carolina), postou um linque pra uma entrevista de Emily Wilson no Facebook. Este texto aqui é pra explicar um comentário que eu fiz na postagem dela, e pra falar, ainda que homem, de feminismo em tradução.
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Emily Wilson é professora na Universidade da Pensilvânia. Em 2017 ela publicou sua tradução da Odisseia, de Homero. E foi durante a realização desse trabalho que ela se deu conta, com algum pasmo, de que seria a primeira mulher a traduzir Homero em inglês. Uma língua que tem mais de 60 traduções só da Odisseia!
A tradução dela demonstra o quanto pode ser diferente uma leitura feminina, e o quanto, como ela mesma diz, a gente dá de barato que os tradutores homens não precisam se explicar por serem homens. Ainda que todo mundo pergunte a ela o que ser mulher trouxe àquele trabalho. Não vou entrar nessa seara toda. Recomendo a bela entrevista dela ao podcast The Western Canon (que foi justo o que a Carolina lincou).
Mas uma coisa eu queria comentar. A tradução de uma das primeiras palavras da Odisseia, o epíteto πολ?τροπος (polítropos) normalmente aplicado a Odisseu no poema. A palavra é famosa entre os tradutores, por ser difícil de explicar (hahahaha, você já vai entender), e por ter recebido dezenas de traduções diferentes ao longo do tempo. Um texto recente registrava, só em inglês, quase quarenta alternativas.
“Literalmente”, o que ela quer dizer é algo como “de muitas voltas” ou “de muitas dobras”… A ideia é descrever Odisseu como um homem de muitas andanças, de muitas manobras, de muitos segredos, de muitas perspectivas… esse tipo de coisa.
A tradução de Wilson optou por “complicated”.
E, senhoras (e senhores), na minha modesta, é uma das melhores manobras tradutórias de todos os tempos. Sem exagero. Quando eu vi isso, dois anos atrás, rolou aquele arrepio na nuca.
Primeiro porque “complicare”, em latim, queria dizer mais ou menos “encher de dobras” (é desse plicare que a gente tira preguear e também plissar [além de chegar, que é outra história]). Daí (cf. supra) o fato de que explicar seria “desdobrar”. Ou seja, a tradução de Wilson tem tipo um lastro etimológico.
Segundo porque semanticamente ela funciona pacas. Pra transmitir o “sentido” ou os sentidos implicados pelo epíteto homérico.
E terceiro porque, num único gesto, ela é 110% competente e 111% subversiva, virando completamente a imagem que a gente faz do herói. Das alturas, numa manobra pra lá de joyceana, ela arremessa Odisseu no mundo simples da realidade complicada.
Especialmente se você leva em conta o verso todo em que o adjetivo aparece. Com Wilson, nada de “Canta, ó musa, o homem de muitos volteios”… O que você encontra, em pleno século XXI, é
Tell me about a complicated man.
Me fala de um cara complicado. Uma frase que ao mesmo tempo funciona lindamente no poema de Homero e, convenhamos, podia abrir uma canção de Beyoncé.
Que papel cultural tem a tradução?
Que papel feminista tem a tradução?
Perguntem à gigante Emily Wilson.
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Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.