Empatia Volume Dois

25/07/2019

Foto: Getty Images | jacoblund

 

1.

Escrita de romance implica imersão. Não importa o quanto o autor esteja familiarizado com a temática, geografia, perfis escolhidos, nunca é fácil. A construção da verdade que sustentará a narrativa contaminará a sanidade dos dias.

Quando escrevi o Voláteis, afundei na pesquisa sobre o drama dos alcoólatras e também sobre uma doença rara chamada porfiria. Com Habitante irreal me envolvi com a tragédia da etnia indígena guarani no Brasil. Com Ithaca Road foi o autismo e suas variantes, também a revisita à psoríase. Para O ano em que vivi de literatura (Foz, 2015) li ensaios sobre a solidão e, em alguns períodos mais turbulentos vivendo no Rio, projetei e experimentei solidão.

Com Marrom e amarelo, mesmo amparado por uma possível segurança do que seria, segundo alguns, o meu lugar de fala (não é minha intenção provocar debate sobre o que seria ou não o tal lugar de fala na conjuntura brasileira hoje), não foi diferente. Tive de me voltar, como talvez ainda não tivesse ousado, para a condição de homem negro, pardo claro, autoidentificado como negro, em igual medida para uma realidade de periferia do bairro onde nasci e cresci e para a denúncia e enfrentamento, em frentes variadas, do racismo hoje no Brasil.

Muitas foram as consequências dessa decisão determinante de leituras, pesquisas, eleições feitas durante a construção do romance. Destaco duas.

Primeiro, uma compreensão mais bem elaborada do papel das mulheres negras na construção de uma nova identidade negra hoje, um novo posicionamento da raça negra no país (lembrando que raça é construção social), a maioria delas ativistas com acesso à academia – um acesso que se ampliou de maneira significativa nas duas primeiras décadas deste século, um acesso estimulado por políticas públicas sem precedentes (políticas públicas hoje em risco) –, sua capacidade de elaboração de um discurso capaz de romper uma poderosa tradição de negação das desigualdades raciais no Brasil.

Em segundo lugar, uma compreensão mais nítida do quanto a justiça no Brasil (a atuação do Poder Judiciário) é gerenciada por uma mentalidade branca, europeizada, egoísta, incapaz de reconhecer a complexidade do desastre denominado racismo estrutural brasileiro.

Em algum momento na parte inicial do romance (ainda na apresentação dos conflitos do protagonista), uma personagem secundária vocifera: “(...) tem juiz que até pouco tempo dizia em debate na televisão que não existe conflito étnico no Brasil, juiz incapaz de sair da sua bolha de privilégio e enxergar a realidade. Um negro denuncia um caso de racismo, juiz atenua e na sentença relativiza, diz que não houve intenção de ofender (...)”.

Quando concluí a faculdade de Direito em 1988, saí daquele processo de aprendizado, que me ocupou cinco anos de vida, com a convicção de que a afirmação da justiça era, na maioria das vezes, uma tentativa fracassada de combate ao caos das relações sociais, um caos no qual uma inevitável cadeia de opressão sustentava um modo de funcionar que fazia de todos os seus integrantes cúmplices e vilões – porque o sistema forjava uma cegueira estabelecida, no final das contas, como única saída racional possível. O que poderia ser mais diabólico?

Poucos anos depois percebi, que, no meu pessimismo, eu estava errado, que, em boa parte, Direito era ferramenta cultural, por vezes a única, capaz de estabelecer locais de disputas mais explícitas, uma ferramenta que não podia ser desprezada, pelo contrário, que precisava ser aprimorada em suas fricções.

Mesmo distanciado na prática jurídica (vendi minha parte em uma sociedade de advogados em 2007 e nunca mais voltei ao exercício da advocacia), acompanho as tendências verificáveis na rotina de ajuizamento de ações e decisões jurisdicionais e sei o quanto o problema do racismo ainda está muito longe de receber tratamento adequado, o quanto determinadas sentenças e acórdãos negam o racismo e mantêm a raça negra em posição subalterna.

Nesse sentido, emblemático foi, em parte, recente posicionamento sobre o peso do estereótipo em decisões judiciais que escutei em junho deste ano, via YouTube, em entrevista dada à Rádio Gaúcha por juíza estadual do Rio Grande do Sul, Karen Pinheiro, responsável pela soltura de jovem negro preso supostamente por engano – jovem detido, segundo consta, dias antes de embarcar para estudos na Alemanha –, preso sob acusação de homicídio por três anos.

A juíza destacou, com inegável dose de coragem e ciente de estar confrontando todo um sistema de justiça, que não se pode falar em neutralidade racial quando se trata de julgadores e julgados, pois há ao redor uma sociedade que discrimina, que segrega, pessoas pela cor das suas peles, e isso impacta, pelo viés inconsciente, as decisões proferidas.

A juíza declarou, como qualquer pessoas decente declararia, que se incomoda de entrar em espaços, logo em um país onde 54% da população é negra, e esses espaços serem predominantemente brancos, que se nega a pensar que pessoas negras não estejam presentes naqueles espaços por não terem capacidade para estar ali.

Em termos estatísticos, ainda são poucas e tímidas as narrativas de ficção que enfrentam as disparidades nacionais abordando expressamente o senso de justiça nos espaços marginais e a justiça encampada pelo Estado, pelos seus órgãos e instituições – nesse sentido, e escapando um pouco da exclusiva temática racial, mas sem dispensá-la, relevante é, por exemplo, o romance Pssica (Boitempo, 2015), do paraense Edyr Augusto Proença, romance que, mesmo tendo recebido pouca atenção da imprensa, da crítica e das premiações, à época do seu lançamento, não para de conquistar admiradores.

Fico profundamente incomodado com a dificuldade que ainda hoje há no enfrentamento de certas questões no Brasil – na verdade, não no enfrentamento das questões, mas no oferecimento de espaços para a exposição de certas questões, como o da negação da existência do racismo por boa parcela dos brasileiros, geralmente por brasileiros que ocupam espaços de comando, de poder.

(Não estou defendendo que literatura tenha de ser engajada, que isso fique bem claro.)

Não foi de graça que muitos ativistas se desesperaram ao testemunharem a posse de um presidente da República que vem há tempos afirmando categoricamente que não existe racismo no Brasil – quando é notório que nada é mais racista do que afirmar que não há racismo.

A justiça é resultado da política, e a política, na acepção aristotélica, é resultado dos necessários embates que amalgamam a sociedade, nem sempre há equilíbrio nesse tabuleiro – na literatura há uma oportunidade única de recriar leituras sobre o que de fato acontece ou estaria acontecendo. Não é necessário que a narrativa acerte, prospecte; o importante é o conflito possível, o que eclode (a verdade que eclode) e suja as mãos.

 

2.

Escrevo para chegar ao outro, para conseguir romper uma deficiência nada negligenciável em perceber o outro, como parte de um processo de leitura e autoquestionamento, mas sobretudo para me compreender diante do outro, no olhar, no pensamento, no temor, na esperança, na empatia, no amor do outro.

A escrita do Marrom e amarelo me ensinou muito sobre um tipo de cegueira que eu jurava que não me pertencia, mas que, para minha surpresa, depois de seis anos de confecção da história, de envolvimento com que imagino a respeito de mim mesmo, está aqui, firme, forte, em mim, também me ensinou (me atualizou) muito sobre o Direito brasileiro, a máquina da justiça no Brasil, o enfrentamento de classes no país, sobre a cultura da divisão, do dividir para dominar, sobre colorismo, sobre opressão, sobre um tipo de afetação do outro que, por mais esforço que se faça, é sempre difícil de compreender, de assimilar.

Sempre há inquietações na estruturação de um romance, provocar a fragilização de certa dogmática, arranhar tabus faz parte da combustão que move um escritor na, condenada ao fracasso, busca pela escrita de uma história que inquiete e resista ao tempo.

 

3.

Em debate recente realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, alguém da plateia me perguntou quando vou escrever a segunda parte do Ainda orangotangos.  Foram algumas as vezes em que perguntaram quando virá a segunda parte do Ithaca Road ou um ainda mais politizado e revelador Habitante irreal 2. Tenho essa sensação de que, quando termino um livro, surge imediatamente o fantasma da continuação, o espectro do livro de continuação. Um livro nunca é pronto para seu autor, já disseram.

Escutando a juíza gaúcha no YouTube, fui assaltado pelo impulso de releitura de certos trechos do Marrom e amarelo – cada vez que leio informação nova apontando retrocessos e desgraças do racismo brasileiro tenho esse impulso, sei que isso diminuirá e desaparecerá assim que o livro chegar impresso às minhas mãos. O fantasma da continuação, entretanto, prosseguirá me assombrando, por ser a temática, esta do racismo, tão avizinhada à ilusão de justiça e à certeza da falta de justiça, realidade tão distante do que poderia se resumir e desvelar seus dolorosos contrastes apenas quando sob os holofotes e ápices episódicos do mercado editorial, por ser parte enorme do que somos há séculos aqui no Brasil, algo de normal e errado, trégua inapropriada, uma das tantas, parte enorme do que ainda vejo, produzo e sou.

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