Mise en Assis: uma crônica metaliterária da escrita criativa

30/08/2019

Por Samir Machado de Machado

 

I

Ele entra em sala de aula trazendo um livro no braço, que faz passar discretamente entre os alunos. Veste um terno feito sob medida nos últimos alfaiates de Porto Alegre, substituídos a contragosto conforme estes vão falecendo com o passar do tempo. Na cabeça, o habitual chapéu de feltro marrom, que põe sobre uma mesa auxiliar. E como hoje está quente, é com o costumeiro tom gentil e tranquilo, de quem assistiria o fim do mundo com a mesma fleuma estoica, que pede “licença às senhoras”, pois vai tirar o casaco.

Os modos educados de gentleman inglês, que parecem deslocados em tempos atuais, parecem contrastar com o cenário de uma moderna sala de aula de paredes envidraçadas, repleta de mesas e poltronas modulares, no terceiro andar do prédio mais moderno da PUC-RS, cujos ares de Vale do Silício foram pensados para ser o cartão de visitas da universidade.

E então o professor Luiz Antonio de Assis Brasil saca seu tablet, conecta-se ao sistema central da sala, e um projetor no teto lança sobre duas paredes simultâneas a captura de sua tela, onde vai desenhando o esquema de uma estrutura para romance linear tradicional. Um aluno faz uma pergunta, que ele não escuta bem. Então ergue o dedo pedindo um momento, pega o celular e, pelo aplicativo wi-fi, ajusta o volume de seu aparelho de surdez. Comenta que, ao contrário de amigos da sua mesma geração, ele próprio tem achado a velhice muito divertida.

Aos poucos, nos damos conta que o livro em questão é Escrever ficção: Um manual de criação literária, que será lançado na semana seguinte, reunindo os mais de trinta anos de experiência de Assis Brasil com criação literária, e que serão o próprio conteúdo da cadeira que nós, alunos da pós-graduação em escrita criativa, iremos estudar.

— A diferença, claro, é que o livro não traz meu mise-em-scène, minhas piadas... — explica, antecipando-se à pergunta inevitável.

Mas é muito mais do que isso, claro.

 

II

Como aluno da pós-graduação em escrita criativa da PUC-RS, o trabalho de conclusão deve ser necessariamente uma obra de ficção, e para isso o curso oferece essa cadeira, especificamente voltada para a construção de romances. Eu já fora aluno do Assis em 2004, na outra oficina de escrita criativa, que ele mantém aberta ao público — uma experiência transformadora que resultou, na prática, no início da minha carreira como escritor.

Ainda é comum escutar questionamentos sobre a validade da experiência de uma oficina de escrita criativa. Partem, em geral, de uma visão romântica a respeito do ofício de escritor, de que “talento não pode ser ensinado” (a ideia de “talento”, por si só, sendo uma visão romântica sobre o resultado de anos de esforço e técnica), ou que oficineiros “escrevem todos igual” (não vejo o que há em comum entre o estilo literário de Daniel Galera, Luisa Geisler, Carol Bensimon ou Letícia Wierchowsky, por exemplo). Em geral, é um argumento que já vêm sendo repetido há pelo menos trezentos anos — “essa fatal revolução que converteu a arte de escrever numa profissão mecânica”, queixava-se um pensador inglês do século XVIII, resgatado por Ian Watt em seu A ascensão do romance.

Porque o elemento principal de uma oficina, arrisco dizer, não é nem mesmo o conteúdo prático das técnicas literárias ensinadas em aula, mas a ideia de reunir pessoas alinhadas por um interesse em comum — produzir ficção — dispostas a discutir e analisar os textos uns dos outros. Porque literatura, no final das contas, é compartilhar histórias, de autor para leitor, mas também entre leitores. E as histórias que compartilhamos formam a base de nossas identidades culturais em comum, e nos dizem quem somos, em termos coletivos.

O escritor baiano Ian Fraser, ao desembarcar em Porto Alegre para participar de um dos muitos festivais literários que ocorrem na cidade, uma vez me disse: “Sinto que aqui afinal encontrei minha turma”. Não há nada de especial na cidade em si, pelo contrário (Porto Alegre carece atualmente de atrativos), o que há é tão somente a tradição de se formarem turmas, grupos de amizade e de interesses comuns, através da leitura e escrita. E se há algo que explique a abundância de escritores de ficção na cena literária de Porto Alegre, é somente isso: a tradição de se oferecerem oficinas literárias, iniciada por Assis Brasil em 1985, que há trinta anos forma grupos unidos pelo interesse comum de discutir ou produzir literatura. São nossas categorias de base. Quando visito escolas, e me perguntam como se inicia na vida de escritor, a resposta que dou é sempre a mesma: ainda que não exista caminho único — e cada escritor que conheci trilhou um caminho diferente — juntar-se a outros que compartilhem dos mesmos interesses é um bom passo inicial. E para quem quer ser escritor, uma oficina literária é sempre um bom passo. Na pior das hipóteses, faz de nós leitores melhores.

 

III

Na segunda parte de cada aula, um aluno apresenta seu projeto, tomando como base a estrutura proposta por Assis: o personagem e sua questão essencial, sinopse, e um resumo com os episódios elencados, se já houver. O perfil dos alunos é eclético, vindos de todas as regiões do país, e com as mais diversas formações, entre letras, psicologia, direito, comunicação e design. Também as experiências variam, indo desde autores já publicados (com ao menos uma finalista do Jabuti) e aqueles que ainda trabalham seu primeiro projeto de ficção.

É começo de semestre. Uma das primeiras colegas a se apresentar é a artista plástica Christine Gryschek. Ela faz a cadeira com o intuito de escrever seu primeiro romance, que acompanha o desencanto de uma mulher com São Paulo durante dois anos, através de um relacionamento. O projeto está nos estágios iniciais, e ainda não lhe está claro que estrutura aplicará ao enredo. Pergunto que autores ela tem como referência, cujos estilos lhe agrada. Ela cita Michel Laub e seu Diário da queda, e de imediato Assis puxa um quadro e desenha algo parecido com um átomo girando.

— O Michel trabalha bastante com o que eu chamo de “estrutura em rondó” — explica apontando a projeção. — Em que há um evento principal, ao qual a história retorna constantemente, cada vez com mais intensidade.

Como ilustração, Assis projeta na parede uma orquestra tocando o Bolero de Ravel. Eu já tinha lido alguns livros do Laub e nunca tinha me dado conta daquele paralelo musical e seu efeito sinfônico no texto — seja ele intencional ou não.

Ao meu lado, meu colega Felipe dal Molin vai anotando tudo. Suas perguntas têm a curiosidade genuína de quem desmonta um equipamento para estudar melhor as peças. Felipe é formado em computação e design gráfico, trabalha com design de games, e há tempos que gosta de escrever. Tem grande interesse nos jogos como linguagem, e acredita que o entendimento mais profundo da linguagem numa forma mais “tradicional”, como a literatura em prosa, só pode ajudar.

— Ao menos, essa triangulação de conhecimentos multidisciplinar tem funcionado pra mim, até agora — explica. — Entre buscar mais foco no que eu já sei ou aprender algo novo, prefiro ir atrás de algo que eu não domino, para conhecer um novo contexto e quem sabe, um dia juntar as coisas.

O espectro de possibilidades é outra coisa que me impressiona aqui — não apenas na aula do Assis, mas no curso como um todo. O orientador de Felipe, prof. Bernardo Moraes Bueno, fez seu pós-doc na mesma East Anglia que formou McEwan e Ishiguro, e em sua cadeira de literatura e linguagem digital, aprendemos a estruturar narrativas interativas de RPG e programar sequências de diálogos para uma inteligência artificial. Já na oficina de poesia com o prof. Diego Grando, uma visita ao Museu de Ciências e Tecnologia da universidade foi usada para propor exercícios livres de produção poética.

Pergunto então a Felipe se ele já sabe que caminho sua dissertação de mestrado irá tomar. Ele está ansioso. Ainda não sabe o que produzir. Tem uma ideia para um roteiro de game de cenário aberto, ou numa novela de ficção. O contraste entre essa sua hesitação inicial com o projeto que apresentará ao final do curso foi, com toda sinceridade, impressionante.

 

IV

Já estamos no meio do semestre agora. Escrever ficção foi lançado algumas semanas atrás no espaço Delfos da Biblioteca da universidade, uma batcaverna das letras onde se preservam acervos literários de autores nascidos no estado, dos diplomas médicos de Moacyr Scliar às runas de Caio Fernando Abreu. Como alguns alunos moram fora da capital, os que não puderam comparecer na ocasião, trazem agora seus exemplares para serem autografados em aula.

Um dele é Valdomiro Martins, natural de Bagé, na fronteira com o Uruguai, que cruza o estado toda semana para vir à aula. Seu projeto de doutorado, intitulado Palanca Negra-Sabiá, será um romance sobre um rapper angolano vindo ao Brasil à procura do pai, militar das forças de paz. Ele nos apresenta sua proposta, discorre sobre a pesquisa em torno da cena de rap angolano, mas há questões indefinidas ainda — o protagonista pode ou não ter AIDS, Waldomiro ainda não fez essa escolha, e os colegas discutem sobre as consequências que isso pode trazer tanto ao enredo quanto ao desenvolvimento do personagem. Assis aproveita a deixa para reforçar a importância de ter os elementos centrais bem definidos na sinopse.

— A sinopse deve ser um instrumento de trabalho para o autor — reforça Assis. — Não é aquela sinopse de programação de cinema, mas também não é resumo. De preferência, é bom que contenha o fim. Zonas imprecisas na sinopse só confundem.

Antes disso, sentado ao meu lado está Felipe, e pergunto como anda seu projeto, ou se já leu o livro do Assis. O projeto avança, não sabe ainda se será algo apenas para apresentar em aula, ou se o desenvolverá de fato como a dissertação do mestrado.

— O livro estou lendo aos poucos, sem pressa. Tenho achado bem bom. Achei mais didático e com mais calor humano que o Story do McKee, ou o Anatomy of Story do John Truby. Estou gostando do tom informal, de conversa.

De todo modo, o curso já o ajudou a encontrar a estrutura de seu primeiro jogo baseado em narrativa.

 

V

É final do semestre, e o inverno chegou. Assis já trocou o chapéu de feltro marrom pelo preto, acrescentando um cachecol à indumentária — como, aliás, metade da turma. É a vez de Felipe finalmente se apresentar — ele havia pedido para ser um dos últimos, para ter mais tempo no desenvolvimento. Felipe apresenta o projeto para uma novela sobre um game designer que precisa reconstruir a própria identidade pessoal ao lidar com a fama repentina, fãs em convenções, e ameaças de morte de haters na internet. Usando a estrutura proposta pelo Assis em aula e no livro para desenhar a narrativa, é uma proposta que se apresenta sólida do começo ao fim, pronta para ser produzida.

— E pensar que, há dois meses, tu não sabia ainda o que fazer — comento, impressionado.

— Mas ainda não sei se vou escrever de fato. É só uma proposta.

No intervalo para o café, Renata Wolf lamenta comigo que o semestre esteja chegando ao fim e, junto com ele, o que talvez tenha sido a melhor parte do mestrado.

— Mas tu sentiu diferença antes e depois, no teu projeto?

— A impressão que eu tenho é que antes eu tratava meu projeto como se olhasse de fora — ela me diz. Renata foi finalista do Jabuti na categoria contos em 2016, e trabalha no mestrado com seu primeiro um romance, que dialoga com os contos de Juan Carlos Onetti, em especial O inferno tão temido. — Como se antes a escrita fosse desenho livre, e agora é engenharia.

— Nada contra desenho livre...

— Sim, nada contra, mas são estilos diferentes. Tirei a acidentalidade e passei a me apropriar e ter consciência de todas as escolhas narrativas que fiz. Ou que vou fazer, e que efeito ou propósito elas vão ter no romance. E teve momentos que validaram algumas escolhas que eu já havia feito de forma intuitiva. Essa sensação foi bacana, dá um pequeno alento de que talvez o projeto esteja no caminho certo.

É nossa última aula, e bem ao modo do Assis, não há solenidade alguma, exceto por um lanchinho comemorativo trazido pelos alunos, com suco, bergamotas e biscoitos — da minha parte, contribui com um pacote de madeleines de supermercado que me pareceram adequadamente literárias.

Na saída, ao se despedir, Assis nos lembra que ainda estaremos nos vendo pelo campus nos próximos meses, onde não faltam cafeterias para novos encontros. Põe o chapéu de feltro na cabeça, e parte de volta para sua sala, com o ar atarefado de quem, no dia seguinte, precisa atender sua outra turma de escrita criativa.

 

***

 

Samir Machado de Machado é escritor e tradutor. Autor de Homens elegantes (Rocco, 2016) e Tupinilândia (Todavia, 2018), atualmente faz mestrado em escrita criativa pela PUC-RS.

 

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog