Divulgação/ Insight Comics
O estúdio de Eduardo Risso tem janelões com vista para o Rio Paraná. A linha do horizonte fica lá longe. Algum autor já me disse que Risso é sua inspiração. Não pelo traço e pela estética, ou não só, mas pelo plano de carreira, pelo entendimento do que quer da vida e do que quer da carreira artística. E provavelmente por causa daqueles janelões.
Não sou quadrinista, mas estou sempre em busca de inspiração como essa. Escrevo, traduzo, gosto de aprender e entender as minúcias de como escreve bem e traduz bem quem escreve bem e traduz bem. Mas também sou um profissional independente trabalhando no mercado cultural com essa coisa amorfa e instável e sem chefe e sem garantias chamada autonomia. E preciso saber como vive quem vive na mesma condição.
Do que se alimentam? Que horas acordam? Trabalham em casa ou têm um estúdio fora de casa? Que horas pegam no batente? Que horas largam o batente? Que bonequinhos têm na mesa? O que fazem no dia que não estão a fim? O que fazem com a culpa pelo dia que não rendeu e, depois, o que fazem com os boletos? Como negociam o horário com o/a conje? E os filhos? Eles tiram cochilos? Pode tirar cochilo? Como evitar o Twitter? É feio trabalhar sem calça?
Masters of Comics é um livro feito para tirar estas dúvidas. Ou eu gostaria que fosse. O título é brega e o método não é nada científico: o autor, Joel Meadows, entrevistou 21 quadrinistas a respeito de seus estúdios e método de trabalho. Alguns deram detalhes até demais, outros foram lacônicos. E é um livro mais de fotos do que de texto. Não há créditos das fotos, então suponho que o autor pediu aos próprios autores para fotografar os espaços de trabalho. Num dia que teve faxina, claro.
Milo Manara passa a manhã se planejando, começa efetivamente pelas 15h, para pra jantar e vai até as duas da matina. Frank Cho começa às 21h e para às 5h. Tim Sale acorda cedinho, trabalha um pouco e volta pra cama para acordar com a esposa. E o Michael Kaluta... bom, o Michael Kaluta responde o seguinte:
Tem épocas em que eu trabalho. Quando eu trabalho, trabalho até cansar. Depois eu vou dormir, acordo e aí trabalho até cansar. E não dou bola para o relógio, porque não faço muita coisa fora de casa. Só que, quando estou naqueles dias, não sai nada. Aí passam duas, três semanas e eu noto que perdi um tempo que queria que voltasse. O que eu não fiz naquele tempo era o que eu devia ter feito. Hoje eu tenho noção. Tenho idade para saber que a carreira tem suas marés. Aprendi há anos, vendo o Bernie Wrightson, que se você quer que uma coisa saia, você acorda e vai trabalhar. Você não vai buscar café nem vai responder e-mails. Você vai lá e começa a trabalhar. E aí você trabalha uma hora, pode parar e fazer o que for e depois volta a trabalhar. Mas se você espera – se eu espero – pode acontecer de eu só pegar no batente às 22h, mesmo que tenha levantado de manhã.
Ou seja: não tenho expediente.
Kaluta também comenta da época em que dividia estúdio com outros. Ele abria a porta para Jeff Jones às 6 da manhã, Wrightson chegava umas 10 ou 11h e Barry Windsor-Smith só depois do almoço. Saíam para jantar juntos. Várias vezes Kaluta preferiu desabar num colchão do estúdio em vez de voltar pra casa, mesmo quando Windsor-Smith procrastinava tocando violão.
Houve também o estúdio Upstart, que abrigou ao mesmo tempo Walt Simonson trabalhando em Thor, Frank Miller trabalhando em Demolidor e Howard Chaykin trabalhando em American Flagg, todos no mesmo recinto. A impressão que o livro dá é que os estúdios coletivos são coisa do passado. Frank Quitely é o único que diz que gosta de trabalhar com colegas na volta – o estúdio dele e dos amigos até já apareceu num documentário.
Aliás, me surpreendi em saber que o estúdio fora de casa, individual, é uma realidade para poucos. E que não é uma questão de ter ou não grana para sustentar um estúdio fora de casa, mas de índole.
Risso, por exemplo, diz que pensou na família: prefere ter estúdio fora para, em casa, só pensar na esposa e nos filhos. Sean Phillips, porém, também diz que pensou na família: mudou seu estúdio para casa porque queria ver os filhos crescerem.
Yuko Shimizu tem o estúdio à parte e nem tem internet em casa porque quer uma coisa bem separada da outra. P. Craig Russell, sobre trabalhar em casa: “[Tem] a conveniência e o conforto, mais o acesso a todo material de referência que eu precisar. E à geladeira.” Russell, porém, às vezes vai trabalhar na biblioteca pública.
Bill Sienkiewicz:
Eu era muito mais regrado na época que trabalhava em Novos Mutantes. Saía do meu estúdio em Westport à noite e passava por um banco com um relógio gigante que ficava alternando horário e temperatura; na maioria das vezes, eu passava ali quando ele piscava exatamente 12h34; três de cada cinco noites, no mínimo. Nas outras noites era questão de um ou dois minutos a menos ou mais. Na época eu não usava relógio. Era um cronograma internalizado.
Questionado sobre como evitar distrações, Tim Sale diz que não é fácil e “aliás, eu devia estar trabalhando”. A entrevista acaba duas perguntas depois, mais curta que as outras.
Dave Johnson diz que todo dia pode ser um Dia Sem Calça, mas como todo dia pode ser Dia Sem Calça, não tem graça não usar calça. E fala dos conges: “É essencial que você fique com uma pessoa que entende que você, sendo artista, provavelmente é péssimo em administrar o tempo. Mas ainda assim aquela pessoa te quer pra vida.”
Tem outras conversas em Masters of Comics, papos que provavelmente interessem mais a quadrinistas de verdade: o que pensar primeiro na página, analógico versus digital, material de referência, qual a marca do nanquim. Meu negócio, porém, é organização pessoal. Já fui atrás de várias referências, não só de quadrinistas, e a conclusão é sempre a mesma: a autonomia é uma coisa amorfa e instável e sem chefe e sem garantias e cada um é cada um. Não existe modelo de conduta perfeito a copiar, mas só jeitos que cada profissional encontrou de se (des)organizar para produzir.
Compreendo isso, baixo a cabeça e, ainda não convencido, sigo me inspirando num detalhe ou outro da organização de cada autor, tradutor, quadrinista e autônomo que eu admiro. Sigo na ilusão de que vou chegar no modelo de conduta perfeito, diário, correto, feliz e produtivo. Sigo sem calças.
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Érico Assis é tradutor e jornalista. Mora em Pelotas e contribui mensalmente com o blog com textos sobre histórias em quadrinhos. Foi editor convidado de O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015 (editora Narval). Traduziu para a Quadrinhos na Cia., entre outros, Garota-Ranho e Minha coisa favorita é monstro. http://ericoassis.com.br/