Antúrios

11/11/2019

Por Rodrigo Levino

O contorno branco das seis flores de antúrio num fundo roxo parou no meu polegar, que deslizava a tela do celular explorando uma rede social. Essa era uma planta comum nos jardins dos anos 1980; recebo acenos de memórias distantes. Abaixo dele, estava o nome de Caio Fernando Abreu, este, um pouco acima de Morangos mofados. Então a memória atuou como se acionasse um botão de fast foward, como de um videocassete.

Já não se viam tantos antúrios por aí quando durante uma aula do colegial em Natal, nos anos 1990, a então namorada do meu melhor amigo assegurou-se de estar fora da vista do professor e reclinou o corpo em direção à mesa escolar, virando o rosto para perguntar a nós dois se “existe mesmo um lugar chamado Sri Lanka?”.

Durante a maior parte da vida estudei num colégio de freiras de uma ordem austríaca, no interior do Nordeste, sertão pesado. A biblioteca do “educandário” era pequena e bem cuidada, tocada por uma das “irmãs”. Daquelas estantes me servi desde cedo lendo clássicos de aventura em edições reduzidas e traduções do Monteiro Lobato, Carlos Heitor Cony, Rubem Braga.

Depois vieram as coleções Vagalume, Para Gostar de Ler e Veredas. Stella Carr com seu O fantástico homem do metrô (meio de transporte que muito fantasiei até conhecer, já contando mais de vinte anos) e Marçal Aquino com A turma da rua Quinze me arrebatavam. Então chegaram os clássicos obrigatórios escolares e contava-se nos dedos quem não reclamava de ter de ler José de Alencar. Eu não tinha objeções, embora nem de longe a paixão que devotei a Jorge Amado quando descobri Gabriela e Capitães da areia naquela insuspeita e sisuda biblioteca.

Segui tateando dentro dessas linhas, numa casa onde nunca se leu prosa de ficção.

"Sim, fica perto da Índia, é uma ilha”, eu disse, “Sério? Nunca ouvi falar”, retrucou a menina com o livro azul de bordas amarelas. “É daí? Posso ver?”, ao que eu soube se tratar da primeira edição de Morangos mofados, da editora Brasiliense, lançado em 1982. Abri o livro com a palma da mão dentro da apostila escolar e tentei ler sem me inclinar tanto, para não atrair a atenção do professor. Eu não prestei atenção mais na aula até que tocasse a campainha de encerramento.

O tal Sri Lanka abria “Os sobreviventes”, o segundo conto do livro. Depois seguiam-se “Além do ponto”, o pasoliniano “Terça-feira gorda”, voluptuoso e trágico, “Fotografias”, “Pera, uva ou maçã?”, tudo tão fresco e radical, dolorido, apaixonado e esperançoso, cheio de tantas janelas abertas para discos (“para ler ao som de Angela Ro Ro”), livros, outros autores que já nas primeiras menções eu havia me convencido de que não sabia como tinha vivido até ali sem tê-los, como sói a um adolescente.

E era também ferino sobre coisas que eu só viria a conhecer na vida adulta, cujas ferramentas para lidar já estavam em frases como “depois Laing embaixo do braço, aqueles sonhos tolos colonizados nas cabecinhas idiotas, bolsas na Sorbonne, chás com Simone e Jean-Paul nos 50”. São Paulo, mon amour...

Aquele exemplar esteve comigo por muitos anos; as pontas das páginas dobradas, umas poucas anotações, uns grifos de trechos de “O dia em que Urano entrou em Escorpião”, cuja cena do “rapaz de camisa vermelha” eu achava divertidíssima. Garimpar Caio Fernando Abreu a partir daquele dia foi um ímpeto tão prazeroso que em pouco tempo tinha lido quase tudo, decorado trechos de contos, cartas, poemas, o que dava para comprar em sebos.

Revisitar a memória dessas aparições — de palavras como “epifania”, os diálogos crus — é como jogar um facho de luz num prisma. Fetichismo adolescente se mistura a genuína paixão, um tanto de condescendência com o que talvez tenha ficado datado, a sempre fresca lufada de paixão pelos contos que nunca envelhecem — “Terça-feira gorda”, um conto-resistência, pode ser lido em 2019 como se tivesse sido escrito há poucos dias.

As cores se alternam, se misturam, dos trechos gravados sobraram o que importa no fim das contas – que é o impacto, a, para usar um termo de Thomas Bernhard, “bem-aventurança do triunfo” que só a literatura pode nos trazer, descortinando universos. Naquele momento, na sala de aula, a torrente de nomes, cores, pessoas e sensações ali descritas foram como uma Supernova.

Antúrios, veja só, voltaram à moda. Caio F. nunca saiu. O calor por esses dias parece o do conto "Sargento Garcia". Em alguma sala de aula, quem sabe, alguém pergunta onde fica o Sri Lanka, o impacto de renova.

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Rodrigo Levino, 37, é cozinheiro, atuou como jornalista/colaborador por doze anos em piauí, Playboy, Veja, Folha de S.Paulo e outros veículos, escrevendo sobre literatura e música.

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