Silvina e Clarice

10/12/2019

Por Livia Deorsola

 

Crédito das imagens: Pepe Fernández (esquerda) | Acervo Clarice Lispector/Instituto Moreira Salles, parte do livro Clarice, uma biografia (direita)

 

O encontro entre Clarice Lispector (1920-1977) e Silvina Ocampo (1903-1993) na verdade nunca aconteceu, mas quase. Foi em 1976, por ocasião da Feira do Livro de Buenos Aires, que Clarice foi ver de perto. O que se sabe é que Silvina não pôde comparecer; mas a promessa existia, como nos lembra Laura Hosiasson no posfácio à edição brasileira de A fúria e outros contos, de 1959, primeiro livro da argentina a ser publicado no Brasil. Ambas teriam lido uma à outra e, em La hermana menor (2014), perfil biográfico de Silvina, a jornalista e escritora Mariana Enríquez registra o que dissera a biografada: “[Clarice] era uma mulher que tinha sentimentos que coincidiam com os da gente. [...] Eu gostava de como ela escrevia”.

Pois bem, agora Silvina pode ser lida no idioma de Clarice. Diante da novidade literária quase anacrônica, não foram poucas as reações de “até que enfim” e “já não era sem tempo” por parte dos leitores brasileiros. A celebração vem do fato de a argentina ser uma das escritoras mais talentosas das letras hispânicas, de produção profícua, e por seus pares já terem aportado por aqui há algumas décadas — estou falando do melhor amigo, Borges, e do marido Bioy Casares. Apesar da boa companhia, Silvina é considerada um bicho raro entre os seus, o que levou muitos leitores e admiradores à distância a aproximarem-na, em terras nossas, de outro bicho raro, de igual potência e extravagância literária, isto é, Clarice Lispector.

Contemporâneas, mulheres em tempos mais difíceis que os atuais, autoras capazes de causar grande fascinação desde seus primeiros escritos, Silvina e Clarice apresentavam, na vida concreta, algumas semelhanças que também ratificam a aproximação. A pintura, por exemplo. Antes da escrita, fora a pintura a principal atividade de Silvina, que em Paris estudou com De Chirico e Fernand Léger. Pintar telas também era uma paixão para Clarice, mas só intensificada em sua vida a partir da década de 1970. Nos costumes, em plenas décadas de 1950 e 1960, Clarice e Silvina viveram como quiseram: a primeira se divorciou, abrindo mão de ser mulher de diplomata para escrever e publicar com mais liberdade; a segunda, com a cobertura que sua classe social lhe dava, tinha uma relação aberta com Bioy (tendo amantes homens e mulheres), alguns anos mais jovem que ela e com quem viveu por anos sem um casamento oficial.

Na estranheza da literatura de Clarice e Silvina, o insólito sempre acompanha as duas. É tentador falar de tantos pontos de contato entre a imaginação de uma e de outra, do mesmo modo que nos encanta lembrar da estranheza que também ronda as histórias contadas sobre suas vidas; elas, que tinham a mesma dificuldade de atuar no mundo real, parecendo nunca estar, sempre tão inapreensíveis.

Em Clarice, uma biografia (trad. José Geraldo Couto), Benjamin Moser nos conta que seu psicanalista sugeriu que a paciente, em vez das quatro ou cinco sessões semanais que fazia (“Clarice me exauriu mais do que todos os meus clientes juntos”), fizesse terapia de grupo, o que obviamente não funcionou: todos os pacientes do psicanalista queriam estar no grupo da escritora (compreensível). Em Com Clarice (2013), de Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant’Anna, ficamos sabendo que num jantar na casa do casal, tudo foi preparado para agradá-la, especialmente a hora inóspita em que seria servido: às seis da tarde. Mas a convidada ilustre foi embora antes de a mesa ser posta; sem dar muitas explicações, disse que lhe doía a cabeça e se foi, simplesmente.

Edgardo Cozarinsky era um jovem aspirante a escritor quando, em 1961, conheceu Silvina Ocampo. Ela tinha 58 anos, ele, 22. “Nunca conheci uma mulher que se parecesse com ela, nem sequer remotamente”, ele recorda em seu Blues – biografias y testimonios (2010). Conta, que certa vez, quando iam se encontrar no Rosedal de Palermo, ela estava conversando com um homem que vestia um sobretudo roto e malcheiroso. Segundo Silvina lhe disse, o homem tinha medo dela. Na primeira vez que o mendigo lhe abrira o sobretudo (estaria nu), ela pediu que ele aguardasse um momento, pois ia pegar os óculos.   

De todo modo, Clarice, ainda que enclausurada em si mesma, se mostrou mais: deu conferências, autógrafos, entrevistas para a tevê, escreveu para a imprensa; enfim, experimentou cedo a notoriedade em seu país. Como a brasileira, Silvina também escreveu romances, além de poesia e de traduzir muito, mas era muito difícil vê-la em registros que não fossem os escritos.

 

Legião estrangeira

Similaridades à parte, frente a frente talvez se ressaltassem suas diferenças. Se Clarice trazia a marca da estrangeira (ucraniana/recifense/carioca, além de universal), da judia, da tragédia da guerra numa Europa oriental distante, se o desconforto e a assombração diante da vida lhe eram constantes, Silvina, que nascera em berço esplêndido, rodeada de privilégios, parecia confortável entre os seus, mas talvez só na aparência; mais confortável sentia-se entre os criados, de quem aprendeu a linguagem que tão bem usaria em seus contos, adotando frequentemente o voseo — o apego e a convivência com os fundos da casa estão no bonito documentário de Lucrecia Martel, Silvina Ocampo: las dependencias.

Se Clarice narrava as sensações e sentimentos a partir de dentro de seus personagens, atrás do pensamento, numa perspectiva intimista, Silvina narrava feito uma observadora mordaz, como que dando um sorriso de canto de boca, sem melindres quanto à perversidade humana. Em ambas, as referências concretas (ambientes, descrição dos personagens) me parecem servir de escada para, em Clarice, dar vazão aos simbolismos inconscientes, e, em Silvina, ao fantástico, beirando o surreal psicanalítico. Clarice sai da brutalidade da vida pela linguagem, enquanto Silvina entra na brutalidade da vida pela linguagem.

 

Dois mundos habitados por mulheres e crianças

Dois tipos de personagens, que talvez indiquem mais concretamente diferenças e semelhanças, chamam bastante a atenção em ambas as escritoras: as mulheres e as crianças. Colho alguns exemplos a seguir — no caso da argentina, me deterei nos contos de A fúria.

Para Silvina, o feminino parece frequentemente marcado pela afronta e pela disputa entre mulheres, sem, no entanto, que o masculino seja necessariamente o centro desarticulador. O que move ressentimentos e ódios viscerais, e não raras vezes mortais, é o feminino da outra, o regozijo — social, erótico ou afetivo — das que possuem algo mais valioso que sua algoz. Bons exemplos são os contos “Carta perdida em uma gaveta”, “A fúria” e “O casamento”.

Vejamos o primeiro deles: em “Carta perdida em uma gaveta”, alguém (que só mais tarde saberemos ser uma mulher) escreve uma carta de ódio (tão próximo do amor obsessivo: “[...] você, que se intromete nas linhas do livro que leio, na música que escuto, dentro dos objetos que vejo. [...] Tudo era menos imundo do que a sua cara”) a outro alguém (que igualmente só saberemos ser uma mulher depois de várias linhas). Descobrimos, então, que o ressentimento nasceu na infância, espaço de todos os males posteriormente desenvolvidos (“Não há criança infeliz que depois seja feliz”). Não há empatia; há paixão desprezada e seu avesso, a vingança. A remetente planeja o envenenamento da ex-amiga, mas não o executa (“Descartei a ideia porque a morte não me pareceu um castigo.”).

Já o feminino em Clarice, em contraposição ao de Silvina (e aqui só cabe a contraposição, pois verdadeiros estudiosos já trataram do tema), aparece mais como representação de quem se é solitariamente, sem a necessidade do reconhecimento ou da comparação com uma outra: as personagens olham para dentro de si, ou são “olhadas” em viés epifânico, místico, filosófico ou erótico, como acontece com a Lóri de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969). Além disso, o feminino parece estar sempre insinuado nas personagens meninas, ainda na infância, como prenúncio do que se apresentará depois na figura da mulher jovem ou madura, transformação que se dá diante de alguma ruptura da vida. É o que vemos no belíssimo conto “Os desastres de Sofia”, em que uma menina tenta a todo custo chamar a atenção de seu professor, a quem ama (“Não amava como a mulher que eu seria um dia, amava-o como uma criança que tenta desastradamente proteger um adulto.”). No conto “Felicidade clandestina”, a passagem da menina para mulher acontece no desfecho, quando depois de ser humilhada constantemente por uma colega de escola, que faz a narradora ir em busca repetidas vezes do livro que lhe promete emprestar, a protagonista, por fim com o livro nas mãos, diz: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”. A busca pelo feminino também está em “Restos do Carnaval”, em que uma garotinha sonha em não ser ela mesma e pular o carnaval. A doença da mãe aplaca a alegria, só recuperada quando um menino mais velho a enxerga e legitima: “E eu então, mulherzinha de oito anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido”. Já em “Legião estrangeira”, a operação é inversa: uma criança com comportamento de pequena adulta é que, diante da revelação de um pintinho, por fim consegue ser de fato criança, apesar da “dor de sua alegria difícil”.

A infância em Clarice parece, portanto, vir marcada pela transformação, pelo rito de passagem, ao mesmo tempo que, através do olhar adulto, revela uma inocência corrompida e com doses de nostalgia. Na perspectiva infantil dos contos da argentina — perspectiva que atravessa grande parte de A fúria e que começa a ser trabalhada já em Viaje olvidado, seu livro de estreia, de 1937 —, tanto a inocência verdadeira quanto a nostalgia não se fazem notar; apenas a inocência que mascara a índole vingativa ou perversa dos pequenos, como se anjinhos aos poucos se revelassem demônios. Quando uma criança fala pelas mãos de Silvina, fala com grande naturalidade, bem instalada em sua perversidade e sadismo. Sem o superego como metro, suas personagens infantis quase tudo exteriorizam, provocando no leitor um horror prazeroso. É o caso de “A casa dos relógios”, “A sibila”, “A fúria”, “O vestido de veludo”, “Voz ao telefone” e “Os amigos”. E mesmo quando suas ações são narradas pelo adulto no qual se tornaram (o que é frequente), essas características não desaparecem: quase não há a transformação que as personagens infantis clariceanas experimentam. Nas criações da autora brasileira, a perversidade, quando há, é enunciada, enquanto em Silvina é parte permanente da paisagem narrativa.

Em “A fúria”, por exemplo, um homem revela uma história terrível ao amigo Octavio (o conto é dedicado a Octavio Paz): tempos antes, ele conhecera Winifred, uma filipina que tomava conta de um menino. Enamoraram-se. O fim é trágico, pois o homem comete um desatino. Mas há uma história dentro da história: o passado de Winifred. Ela conta a ele que, quando menina, em sua terra natal, vivera a perda da melhor amiga. Aos poucos ficamos sabendo que a inveja e a cobiça estão por trás do fato terrível, sem serem nomeadas: é o leitor que as deduz. Winifred diz: “Um dia, numa brincadeira, ela prometeu que me daria o anel quando morresse. [...] A verdade é que posso me gabar de ter sido bondosa só com uma pessoa na vida: com ela. [...] Lavinia [tinha] os cabelos compridos e claros, a pele muito branca. Para corrigir seu orgulho, um dia cortei-lhe uma mecha [...]; tiveram que cortar o resto dos cabelos, para igualá-lo”. Aqui e em outras tantas histórias, Silvina dá à “crueldade inocente”, como dizia Borges, seu toque de humor, outro traço muito característico de suas histórias, um humor ora negro, ora cínico, quase sempre catártico.

Dissonâncias e afinidades à parte, talvez o que mais una as duas escritoras seja justamente aquilo que as diferencia ontologicamente: Clarice era Clarice, não era outra coisa nem ninguém, assim como Silvina era Silvina, sem precedentes ou antecedentes. E se tivessem de fato se encontrado, numa tarde de 1976, quem acenderia o primeiro cigarro? Quem tomaria a iniciativa de encerrar o encontro, alegando repentina dor de cabeça? O certo é que falariam de literatura. E de cartomantes, claro.

***

Livia Deorsola é editora e tradutora. Além de A fúria, de Silvina Ocampo, traduziu livros de Bioy Casares, Pedro Mairal e Daniel Sada — por este último, foi indicada ao Prêmio Jabuti de Tradução em 2018.

 

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