Em tradução (de alto a baixo)

08/01/2020

para o Simão Valente, que entenderá

 

 

Dia desses a pequena obra-prima que é o disco Ok Ok Ok, de Gilberto Gil, ganhou o Grammy Latino de melhor álbum brasileiro. É um daqueles casos em que o prêmio é que ganha legitimidade. O disco, afinal, é bem maior que ele. Mas, mesmo assim…

No passeio de ontem com o cachorro eu fui reouvindo o disco. E lembrei de escrever uma coisa aqui pra vocês.

Porque lá na época do lançamento de Poemas, de T.S. Eliot, eu mencionei aqui que tinha me inspirado numa rima que ouvi no disco pra traduzir um poema de Eliot. E umas semanas atrás descobri que andei tomando bordoada na arena de linchamentos e vídeos de gatinho que a gente chama de Facebook.

Tomar as bordoadas, ora, ok ok ok. Estou com a metafórica bunda na alegórica janela no momento em que assino uma tradução com esse grau de visibilidade/responsabilidade. Mas eu ainda acho que vale a pena “defender” uma ideia. Porque o motivo de algumas pessoas reclamarem foi eu ter aparentemente conspurcado a pureza da poesia de Eliot ao introduzir umas gotinhas de música brasileira, popular, pobrinha… preta?

 

Aos fatos?

(desculpa se você lembra da discussão)

A questão era a rima de “the women come and go” com “Michelangelo” logo na abertura de “A canção de amor de J. Alfred Prufrock”, primeiro poema do primeiro livro de Eliot. 

Pois bem, a graça formal do poema é o quanto ele brinca de ser quase regular e quadradinho, em termos de métrica e de rima. Tem todo tipo de rima, quase-rima e rima enviesada por ali. E a tradução fez lá sua força pra mostrar isso direitinho pro leitor brasileiro. 

Essa rima em questão é o ápice da coisa toda; e isso porque ela é encandalosamente ruim. Você tem que forçar um acento tônico na última sílaba de Michelangelo pra coisa funcionar. É quase uma rima-piada.

Eu ia tentando soluções mais “delicadas”, sem querer correr o risco, quando ouvi Gil rimando “metrô” e “Michelangelo” na pérola que se chama “Uma coisa bonitinha”. 

Foi um sacudão. Pensei: aprende, meu filho. Está aí um poeta dos grandes te mostrando que dá pra se divertir em português como Eliot fez em inglês. Voltei ao poema, depois de discutir a coisa tanto com Paulo Henriques Britto quanto com Guilherme Gontijo Flores, e fechei a versão final em “as damas dão olá e alô”, rimando tortamente com o nome Michelângelo.

 

E até onde eu tenha visto ninguém reclamou da rima em si. Da decisão. Mas só do fato de eu ter, aqui, fornecido um pedigree vira-lata [sic] pro procedimento.

E isso me incomodou.

Porque cheira a elitismo (desde quando Gilberto Gil é arte baixa!) e porque acena pra um desconhecimento do próprio método eliotiano, ele mesmo um camarada mais do que interessado em juntar popular e erudito. Eliot, o autor dos poemas dos Gatos. Eliot, que escrevia poesia satírica/erótica pros amigos e era viciado em Sherlock Holmes. Eliot, o primeiro registro em inglês da palavra “Bullshit”.

Bullshit.

Acho tolo alguém querer estudar procedimentos complexos de rima em inglês, nos dias de hoje, sem falar de Eminem. Acho bobo não reconhecer que, como dizia Manuel Bandeira, “Tu pisavas nos astros distraída”, da canção “Chão de Estrelas” de Orestes Barbosa, era talvez o verso mais bonito da língua portuguesa. Acho uma perda não se reconhecer que o decassílabo mais sensacional produzido neste século no Brasil bem pode ser “Velhice: cálculos, calos, calvície”, do mesmo Gil, naquele mesmo disco. Acho acima de tudo estranhíssimo ter que defender isso tudo em pleno século 21.

A quem ainda insiste, eu tenho é que terminar parafraseando o outro baiano, e dizendo que, sobre poesia, cultura, e Eliot:

Você não está entendendo nada.

Muito pop?

Oops, I did it again.

***

 

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

 

Caetano Galindo

Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.

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