Diários do isolamento #7: Luisa Geisler

29/03/2020

Os “Diários do isolamento” são parte do projeto Leia Em Casa — que está oferecendo uma série de conteúdos especiais para quem vai permanecer em casa nos próximos dias — e pretendem fazer um registro coletivo de uma experiência nova, inesperada, cheia de incertezas e que ainda não sabemos quanto tempo durará.

A ideia é tentar diminuir a distância entre as pessoas, aproximando vozes distintas, de áreas, opiniões e idades variadas, como uma conversa em que os relatos se complementam. A cada dia um autor diferente traz para o leitor um texto sobre a vivência deste momento difícil em que a união é fundamental para mantermos a saúde física e mental. Participam da do projeto Jessé Andarilho, Elvira Lobato, Fábio Moon, Jarid Arraes, Eliana Souza Silva, Alejandro Chacoff e Luisa Geisler.

E nunca é demais lembrar: em tempos assim, a leitura e a informação são essenciais — e o livro segue sendo a melhor companhia.

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Diários do isolamento

Dia 7: Não vou escrever sobre Corona

Luisa Geisler

 

Eu não quero escrever sobre a quarentena. Não quero porque escrever sobre a Covid-19 seria reconhecê-lo. Seria deixá-lo entrar em uma parte muito mais contaminável, muito mais frágil que meus pulmões. Eu não vivo nos meus pulmões. Eu vivo em outro lugar.

Uma frase que sempre largo por aí é que me relaciono com o mundo através de textos. Sendo uma criança tímida e com fobia social em eterno tratamento desde 1991, os livros me ajudaram a entender a realidade, a ver além da clausura. Escrever permitia que eu me expressasse, quando não conseguia chegar ao final de uma frase por vergonha de sequer começar.

Então, não quero escrever a respeito. Não vou escrever a respeito.

Vou escrever sobre Guilherme. Ele é meu mozão, meu companheiro de quarentena e meu parceiro do crime. Ele fechou o quarto de visitas para deixar com uma cara séria e agora atende seus pacientes de terapia lá. Ele usa fones e não se ouve nada saindo do quarto — mas eu comecei a trabalhar de fones. Normalmente, trabalho com o som da rua, o que me gerava um medo de ter uma linguagem e texto com ritmo de banda marcial de escola e agora, de buzinas. Sempre achei que o som entra no texto. É impossível fazer duas atividades verbais ao mesmo tempo, a zona que processa isso no cérebro é a mesma, e meu medo era que os sons virassem algum tipo de palavra. Mas falar de medo é falar de quarentena. E eu não vou escrever a respeito.

Vou escrever sobre meus gatos. Tenho três. Varig, Queen Bolonhesa e Telperion. Eles são meus parceiros de escrita, ficam ao meu redor. Telperion gosta tanto de colo que não se importa nem com um laptop em cima de si, desde que possa ficar nas pernas. Se eu o tiro, ele volta. Gostam de companhia. Cada dia que passa, cada dia que não saio, tenho pequenos lapsos de ficar olhando para eles. Ronronam, cabeceiam pedindo carinho, miam, fazem escarcéu por comida. São tão peludos e belos. São “belos”, não bonitos. Porque “bonito” não é uma palavra bela como “belo”. E meus gatos são belos. Imagino que ter um filho seja isso vezes vinte. Estão tão tranquilos, não são contagiosos. Mas falar de contágio é falar de corona. E eu não vou escrever a respeito.

Vou falar de livros. Tenho mergulhado em quadrinhos, como se um puxasse o outro, como se não estivesse em condições de mergulhar em palavras, como se palavras fossem reais demais. Comecei relendo O Perfuraneve — de Jacques Lob, Benjamin Legrand e Jean-Marc Rochette. Por algum motivo, a capa bizarra bicéfala do quadrinho Desenhados um para o outro, de Aline e R. Crumb, veio a seguir. Já era fã de Craig Thompson, e terminei Habibi em uma sentada. Estou no meio de uma aventura de piratas de Samir Machado de Machado no Brasil Império em Piratas à vista. Eram livros que eu disse que leria “uma hora dessas”. Não imaginei que a hora seria essa. Não imagino por que a ordem surgiu assim. Tinha começado O Perfuraneve por conta de um podcast para o qual contribuo chamado Hora da distopia. Mas falar de distopia é falar de corona. E eu não vou escrever sobre isso.

Vou falar da minha rotina, que não mudou tanto assim. Não tenho escrito. Não tenho conseguido, não há espaço mental possível. Estou traduzindo um livro delicioso, tenho ativamente tentado trabalhar mais e ficar cada vez mais offline. Lavo as mãos. Nos primeiros dias, travei com notícias e atualizações e teorias sobre medicações, gráficos e mais gráficos e maravilhosas lives do Atila Iamarino. O problema é que não consigo dormir depois. Fico rolando na cama pensando em como não consigo prever nada — e tentando prever alguma coisa. Crio negociações no meu cérebro. Se isso acontecer até maio… E logo em seguida me dou conta de que há um inverno gaúcho. No Rio Grande do Sul, o inverno e sua umidade já quebram no meio aqueles com problemas respiratórios. Temo mais pelo inverno do que um personagem de Game of Thrones. No verão, não bebo muito, mas tenho uma espécie de alcoolismo seletivo. Nunca me passo na cerveja, porque não gosto tanto assim. Mas vinho? É normal que as garrafas acabem mais rápido do que eu tenha me dado conta. E não tomo muito vinho tinto no verão, porque não combina. Tenho lavado as mãos. Como comentei, é um alcoolismo altamente cheio de frufrus, o que me faz achar que não sou tão alcoólatra assim — mas até quando? Tenho tentado controlar meus medos através do consumo, mas lutando contra tendências acumuladoras. Perco batalhas estranhas. Papel higiênico e sabonete? Temos uma quantidade adequada. Batata palha, temos três pacotes. Shampoo? Nem temos um na reserva. Legumes congelados? Uns cinco pacotes. Três abóboras — e eu só gosto de comer abóbora, nenhuma relação com seus poderes mágicos de transporte. Tudo isso para tentar me proteger. Mas proteção implica algo de que se proteger, além de mim mesma, e esse algo é o Corona. E vocês já sabem.

Tenho imperfeita noção do meu privilégio. Posso pedir entregas do mercado, já podia trabalhar de casa, o emprego do meu parceiro se adapta (mais ou menos) a um home office. Tenho gatos, nem são cachorros que precisam sair na rua. Não tenho filhos, que nessa situação poderiam estar muito confusos. Tenho acesso a uma terapeuta (que também me atende por Skype), tenho minhas medicações. Tenho uma rede de apoio. Tenho amigos. Mas tenho, além disso tudo, medo pelo que virá a seguir. Mortes incontáveis. Empresas fechando, desemprego maciço. Tudo em escala global, em cada cidade, cada esquina. Um presidente burro como uma portinhola, fascista e orgulhoso. Será que alguém vai querer sequer ler um livro depois de tudo isso? E se quiser, por que um dos meus? Medo de a Luisa do passado ter feito as piores escolhas. A frase “nada será como antes” soa um exagero, mas um exagero que se encaixa neste absurdo. 

Mas ao menos nesta primeira semana, protegi o que me era mais caro. Fiz desenhos em um aplicativo de conversa conjunta, desenhamos para minha mãe ficar em casa. Abracei aqueles que podia. Meditei nos dias que consegui. Tentei perdoar minha falta de produtividade e o fato de não ser Shakespeare. Falhei na tarefa anterior e tentei me perdoar por isso. Chorei e gritei em travesseiros, como um personagem de sitcom. Teremos teorias da conspiração no WhatsApp todos os dias, mas também textos bonitos como o que a Natalia Borges Polesso postou no Instagram esses dias. E esse vírus bosta até pode levar meu pulmão se quiser (idealmente não), mas nunca vai tirar minha habilidade de falar. Porque eu falo digitando — e minhas mãos estão desinfetadas e prontas. 

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Luisa Geisler nasceu em 1991 em Canoas, RS. Escritora e tradutora, é também mestre em processo criativo pela National University of Ireland. Pela Alfaguara, publicou Luzes de emergência se acenderão automaticamente (2014), De espaços abandonados (2018) e Enfim, capivaras (2019), além de Corpos secos, romance distópico de terror escrito a oito mãos com Natalia Borges Polesso, Marcelo Ferroni e Samir Machado de Machado a ser lançado em breve. Foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura por duas vezes, além de finalista do Prêmio Machado de Assis, semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura e duas vezes finalista do Jabuti.

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