Diários do isolamento #8: Jessé Andarilho

30/03/2020

Diários do isolamento

Dia 8

Jessé Andarilho

 

Confesso que está difícil. Ficar em casa o dia todo não é fácil, principalmente pra uma pessoa que tem Andarilho como codinome, que vive visitando escolas, presídios, favelas, universidades e ONGs que trabalham com jovens.

Esse isolamento social tá sendo pior do que eu esperava. Sei que é o certo, que a doença não é uma “gripezinha”, e que nossa atitude de ficar em casa é essencial para frear o vírus.

Recentemente, as pessoas aqui perto de onde eu moro começaram a voltar para as ruas. Cada um tem uma justificativa, mas a maioria usa os mesmos argumentos que o presidente usou na televisão e nas redes sociais.

As pessoas estão querendo comparar a Covid 19 com outras gripes e outras doenças epidemiológicas. Elas falam que a H1N1 matou muito mais, que o sarampo tem uma taxa de letalidade maior aqui no Brasil, e que até o próprio mosquito da dengue matou mais pessoas que o coronavírus. 

A diferença é que o poder de transmissão do novo corona é maior que o dos outros. Não conheço muito bem o sarampo, nem o H1N1, mas conheço bem o mosquito da dengue. Já participei de várias campanhas quando trabalhava no posto de saúde. Conversamos com muita gente sobre os cuidados com a água parada, pois é na água que os mosquitos colocam seus ovos, que viram as larvas até se transformar no mosquito Aedes aegypti.

É meu povo, em verdade vos digo, dessa vez O MOSQUITO SOMOS NÓS. Não é aquela brincadeira de “Comigo não tá”; parece mais “Pique-ajuda”, onde uma pessoa toca na outra e ambas vão tocando em outras, que vão encostando em outras, e assim sucessivamente. A diferença é que isso não é brincadeira. A coisa é séria. Você já sabe, mas arruma justificativa para se manter na rua.

Sabemos que é quase impossível ficar em casa para quem não tem uma renda fixa e que é preciso correr atrás do pão, mas vejo muita gente nas ruas de bobeira e jogando conversa fora. Ontem recebi um convite para um baile funk. Isso mesmo, o DJ me convidou para um baile. Perguntei se ele estava de sacanagem com a minha cara e o cara me bloqueou.

Gente, o mundo todo está correndo atrás de soluções para manter o povo confinado. Aqui também vejo várias ações importantes dentro das favelas e em locais onde vive uma grande quantidade de moradores de rua.

Parece que nos Estados Unidos o governo vai ajudar oferecendo mil dólares a pessoas que vivem em situações de vulnerabilidade. Acho que em Paris a quantia para ajudar as pessoas é de 600 Euros. Já no Brasil, o presidente apoia movimentos de empresários que são contra o confinamento.

Assisti a alguns vídeos de velhos ricos brancos, isolados e confinados em suas belíssimas fazendas pedindo ao povo para voltar ao trabalho, pois a única coisa que pode acontecer é a morte de velhos pobres.

As pessoas estão mais preocupadas com os CNPJs do que com os CPFs. A justificativa de que no Brasil é mais difícil ajudar as pessoas pobres já é um alerta de que aqui tem muito, mas muito mais pobre do que rico. Foi preciso um vírus poderoso para mostrar o tamanho da desigualdade social do nosso país.

***

Jessé Andarilho nasceu em 1981 e foi criado na favela de Antares, no Rio de Janeiro. Filho de vendedores ambulantes, trabalhou com diversas atividades na sua comunidade, até ler seu primeiro livro, aos 24 anos. Foi quando, no trajeto de aproximadamente três horas que fazia de trem de sua casa até o trabalho, passou a usar o bloco de notas do celular para contar histórias. Dessas anotações surgiu o romance Fiel, publicado pela Objetiva em 2014. Em 2015, foi convidado para integrar o grupo de redatores da novela Malhação, da TV Globo. Foi diretor de reportagem do programa Aglomerado, da TV Brasil, e produtor da Cufa – Central Única das Favelas. Fundou o C.R.I.A., Centro Revolucionário de Inovação e Arte, e o Marginow, com a proposta de dar visibilidade aos artistas da periferia. Em 2019, publicou, pela Alfaguara, seu segundo romance, Efetivo variável. Atualmente, Jessé Andarilho realiza palestras em todo o Brasil, contando um pouco da sua história e mostrando como sua vida foi transformada pela literatura.

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