Diários do isolamento #12: Eliana Sousa Silva

03/04/2020

Diários do isolamento

Dia 12

Eliana Sousa Silva*

 

Momento em que muitas coisas se movimentam...

Sigo em quarentena, em uma semana muito agitada de trabalho. Foram muitas reuniões virtuais, usando diferentes aplicativos, discutindo assuntos diversos sobre minhas atividades em São Paulo, na Redes da Maré, no Festival Mulheres do Mundo e, como não poderia deixar de ser, discutindo o que fazer diante da pandemia que estamos vivendo. Fiquei muito impressionada em perceber que, nesse período de isolamento, minha rotina de trabalho continuou extremamente ativa e que reunião virtual também é muito cansativa. Na realidade, ficar em casa e não despender tempo de locomoção de um lugar a outro, a fim de cumprir uma agenda de reuniões, abre espaço para que mais conversas aconteçam. Nesse fluxo, tenho almoçado no horário mais conveniente, entre um encontro e outro, e, sem gastar muito tempo, saio do meu escritório de trabalho e vou até a cozinha preparar a comida.

Tenho tentado manter uma rotina de exercícios físicos e costumo fazer isso no início da noite. Infelizmente, as reuniões têm se estendido até tarde e, então, para não deixar de me exercitar, tenho subido na bicicleta ergométrica e pedalado durante as próprias reuniões. Posiciono o computador estrategicamente, e sigo com os meus treinos. Sinto muita falta de poder caminhar na rua, das massagens e da fisioterapia que faço para aliviar as dores difusas que sinto no corpo. Mas prossigo atenta para dar o maior número possível de passos dentro de casa.

Após duas semanas de confinamento, com uma rotina pautada pelas inúmeras questões e demandas para pensar ações em torno da crise do coronavírus, uma preocupação bate bem mais forte que as outras: o que fazer para manter a coerência e o compromisso com o que faço? Não tenho como simplesmente olhar daqui, isolada em meu canto, o que está acontecendo nas favelas e periferias. Muitas pessoas me acionam externando preocupação e perguntam o que pode ser feito de forma concreta para ajudar.

Penso nas dezesseis favelas da Maré e na violência que se manifesta com a perda da renda de um grande número de pessoas que trabalham de maneira autônoma. Vem à cabeça os idosos que, muitas vezes, moram sozinhos e os casos de pessoas que, em situações normais, já não têm seu sustento garantido. Como têm vivido os que moram nas ruas, algumas delas usuárias de crack e que, de algum modo, apoiávamos com nosso projeto de acolhimento no Espaço Normal?  

De fato, a situação das pessoas que moram nas favelas nos deixa em alerta quando percebemos a possibilidade de contágio em massa. Li alguns textos de especialistas, assisti a vídeos, vários disseminados pelo WhatsApp, busquei informação sobre como o coronavírus está se desenvolvendo em outros países e quais medidas os governos estão tomando. Mais importante que isso é também entender como a sociedade tem respondido à nova ordem que se impõe. Me chamou atenção — em todas as fontes em que pesquisei para entender o processo de contaminação do coronavírus — o fato de que o isolamento e as medidas de higiene pessoal são consideradas as formas primordiais de prevenção.

Os protocolos sugeridos pelos órgãos do sistema de saúde e divulgados nos grandes meios de comunicação são claros ao enfatizar a necessidade de haver distanciamento e isolamento entre as pessoas, de se lavar as mãos corretamente e do uso de álcool gel. Quando olho para isso e vejo que todas essas medidas são muito difíceis de serem implementadas nas favelas, penso no tamanho do desafio que será tentar fazer com que o protocolo solicitado seja adaptado, de algum modo, ao contexto real da vida dessas populações.

Algumas notícias começam a chegar da Maré. Fico sabendo que uma boa parte dos moradores nas diferentes favelas não está respeitando a quarentena, que boa parte dos comércios está abrindo suas portas, que um número significativo de crianças está nas ruas brincando. Esses relatos dão a real medida de que ali as pessoas duvidam de que poderão se contaminar. E será que, se elas tivessem certeza disso, teriam condições de cumprir os protocolos para evitar o contágio? Talvez não. As casas são pequenas, moram muitas pessoas juntas — algumas famílias com mais de três pessoas ocupando um quarto —, há poucas ou nenhuma janela.

 Esses relatos me deixam assustada e receosa com a forma como a contaminação pelo coronavírus vem acontecendo em outros países e as respostas que os governos têm dado. Fico pesando o que acontecerá no Brasil, especialmente com as populações mais empobrecidas. Algo se move dentro de mim de forma séria. Ao buscar entender e dar respostas para a situação difícil que estamos vivendo, percebo que o que estamos chamando de crise é, nada mais, nada menos, que reflexo das escolhas que temos feito como sociedade ao longo do tempo. Vamos sair dessa pandemia, mas não sem as implicações de algo que tem um devir em suas raízes. 

Nas divagações que acompanham algumas das minhas noites, recordo um pensamento que li em um texto e no qual acredito muito: o poder que uma pessoa exerce sobre a outra ou mesmo o poder que um sistema tem sobre uma sociedade passa sempre, de alguma maneira, pela permissividade. Isso me remete aos governantes que temos atualmente no Brasil e no Rio de Janeiro (em especial), cuja falta de compromisso com o presente e o futuro é algo que os faz negligenciar e desrespeitar por completo os direitos que deveriam ser garantidos a todas as pessoas. E isso se estampa na crise trazida pelo coronavírus. Nesse momento, somos todos afetados. Contudo, repito mais uma vez, muitos serão atingidos não somente por um vírus, mas pelas consequências decorrentes de algo que estrutura o Brasil: a desigualdade social. Porém, esses pensamentos ficam para os próximos relatos.

***

Eliana Sousa Silva nasceu em Serra Branca (PB) e morou na Maré durante 25 anos. É autora do livro Testemunhos da Maré (Aeroplano, 2012) e fundadora da Associação Redes de Desenvolvimento da Maré, da qual é diretora.

A Redes da Maré promove mais de vinte projetos de desenvolvimento local, arte, cultura e educação nos territórios da Maré, com destaque para o Curso Pré-Vestibular Comunitário da Maré, o Programa Criança Petrobras na Maré e o movimento “A Maré que Queremos”, com mobilização social e fórum permanente para debater a melhoria da qualidade de vida nas comunidades da região.

Recebeu diversos prêmios, entre os quais o Empreendedores Sociais, da Ashoka (2000). Atualmente é também consultora do Canal Futura e da Associação Cidade Escola Aprendiz, de São Paulo, e está escrevendo um livro sobre a criação da Redes da Maré, que será publicado pela Zahar.

 

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