Diários do isolamento #16: Elvira Lobato

07/04/2020

Diários do isolamento

Dia 16: Mãos à obra!

Elvira Lobato

 

 

Entrei na terceira semana de confinamento resignada com a suspensão das caminhadas, depois de já ter abandonado a natação. O exercício físico diário era meu oxigênio, meu rivotril. Se acordava ansiosa e um pouco deprimida, bastava nadar por uma hora para recobrar a disposição e o entusiasmo. No início do isolamento, troquei a piscina pela caminhada, que também abandonei em prol da segurança. Passei a subir escadas. Moro no décimo primeiro andar, e no segundo dia de treino consegui completar o circuito duas vezes. Mas enjoei rápido.

Subir escadas é seguro, porém chato e claustrofóbico. Repararam o quanto os construtores economizam no acabamento das escadarias internas? As paredes são cinza e o piso, de cimento. No meu prédio, não há iluminação natural nas escadas, que são tratadas apenas como rota de escape. Não me surpreende não ter me esbarrado com nenhum vizinho durante os exercícios. Na próxima reunião de condomínio, quando passar a pandemia, vou sugerir pintarmos as paredes de uma cor clara e convidativa. É pouco provável que levem a sério a sugestão, porque certamente estaremos quebrados e com outras prioridades.

Uma grande vantagem da caminhada ao ar livre é que ela nos convida a soltar os pensamentos. Sempre tenho muitas ideias enquanto caminho. Seja para escrever um novo livro ou produzir uma reportagem, seja para solucionar problemas domésticos corriqueiros. Subir escadas não nos permite voo mental. Todo o esforço fica voltado para conseguir respirar e chegar ao topo.

Decidi comprar uma bicicleta ergométrica. Achei uma usada na internet, e o vendedor se dispôs a trazer a traquitana de Nova Iguaçu (município da Baixada Fluminense) até minha casa. A entrega em domicílio era minha pré-condição para fechar o negócio, uma vez que o objetivo da compra é não sair de casa. Antes de ligar para o telefone fornecido pelo site, pesquisei sobre ele no Google. Tenho ouvido falar sobre o aumento de golpes após a crise, e fiquei com medo de ser mais um. Me tranquilizei quando vi a imagem de um jovem sorridente, com roupa esportiva. Certamente estava em viagem de férias quando postou a foto.

Assim que o contatei, descobrimos que é colega de trabalho do meu genro. Aliás, foi ele que reconheceu minha filha ao meu lado quando também pesquisava sobre mim. Repararam como a internet democratizou o papel de detetive? Suspeito que vou me enjoar da bicicleta e que, logo, logo, ela poderá virar cabide de roupas e de bolsas. Se for útil durante o confinamento, terá cumprido seu propósito. Planejo doá-la a alguma instituição de reabilitação, caso sobreviva à pandemia.

O coronavírus derrubou o mito alimentado por muita gente de que os cinquenta anos são os novos trinta, e de que os sessenta são os novos quarenta. Chegamos a creditar que tínhamos conseguido enganar o tempo e prolongar a juventude. A ilusão caiu por terra quando esse vírus letal para a terceira idade se instalou entre nós. Todos com mais de sessenta anos estão no grupo de risco. Não importa se aparentam ter mais ou menos idade, se os músculos estão flácidos ou tonificados; se os cabelos são grisalhos ou coloridos. Os sessenta continuam os sessenta, como foram para a minha mãe e para a minha avó. Minha irmã, que tem mais conhecimento médico, me explicou que o envelhecimento das células e do sistema imunológico é inexorável.

O confinamento diminui meu poder de concentração. Sou hiperativa, não consigo ficar parada. Preciso de foco e de projetos para ser produtiva. Senão, viro uma barata tonta. Nos últimos dias, descobri uma razão de viver: fazer máscaras de pano para doar às famílias pobres, que estão em extrema vulnerabilidade ao coronavírus. Estou tão ocupada nessa tarefa que serei breve neste texto para não perder tempo na empreitada. Costurei 43 máscaras de pano no final de semana, e vou continuar firme enquanto tiver material em casa. Ainda não sei como farei para entregá-las aos destinatários, já que não saio. Mas este é um problema secundário agora. A prioridade no momento é ter o que distribuir.

Fazer máscaras caseiras é a nova mania nacional desde que o Ministério da Saúde — que no início só aconselhava o uso delas por pessoas infectadas — passou a recomendá-las a toda a população. Mas como conseguir matéria-prima se as lojas de tecidos estão fechadas? Tenho visto profissionais de saúde aconselhando que se aproveite lençóis usados, mas acho que devem ficar um horror. Aprendi a fazer as máscaras pela internet, graças às aulas da costureira Marlene Mukai. Tenho máquina de costura em casa e uma pilha de tecidos e de retalhos que sobraram dos vestidinhos da minha neta, e estou caprichando no visual.

Tive o privilégio de conhecer, há alguns anos, a grande Noemi Gontijo, fundadora do Salão do Encontro, uma instituição social e educativa espetacular de Betim (MG). Ela tinha noventa anos quando conversamos, e me ensinou que é preciso oferecer o melhor e o mais bonito que pudermos quando nos propomos a fazer algo pelos pobres. Essa é a receita do sucesso do trabalho dela e espero que seja a do meu também. Estou trabalhando pela manhã e à tarde, focada e sem depressão. Nos vemos em uma semana.

 

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Elvira Lobato é jornalista e trabalhou na Folha de S.Paulo por 27 anos. Venceu alguns dos principais prêmios de jornalismo no Brasil, com destaque para o Prêmio Esso em 2008 pela reportagem sobre o crescimento do patrimônio da Igreja Universal. Antes da Folha, trabalhou para o Diário de NotíciasGazeta de NotíciasÚltima Hora, e foi colaboradora do Jornal do Brasil e do Opinião. Elvira é autora de Instinto de repórter, publicado em 2005. Em 2016, foi homenageada pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) pelo conjunto de seu trabalho jornalístico. Em 2017, publicou Antenas da floresta: a saga das tvs da Amazônia pela editora Objetiva.

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