Diários do isolamento #19: Eliana Sousa Silva

10/04/2020

Diários do isolamento

Dia 19: O momento pede urgência

Eliana Sousa Silva

 

A semana anterior anunciava que a seguinte não seria fácil. Como dar — nesse momento — uma resposta consistente à necessidade de promover ações que possam contribuir para minimizar os impactos de uma possível contaminação massiva nas dezesseis favelas que formam a Maré? Pensar nisso é um desafio tremendo. E recorro a um trecho de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, que me conforta o coração: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta...”

Nesse período, as reuniões virtuais que entraram em minha rotina tiveram pauta única: elaborar uma campanha de apoio imediato às pessoas ou famílias da Maré que logo perderiam suas rendas em função da demanda de quarentena. A primeira articulação que comecei a fazer foi com parceiras de São Paulo nos projetos de pesquisa que desenvolvo, a partir da minha inserção na USP. 

Juntei-me a mulheres que, como eu, têm uma trajetória de ativismo a partir do seu lugar de origem, a periferia. Estou falando da Carmem Ferreira, do Movimento Sem Teto do Centro – MSTC, e da Antônia Cleide, da União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região – UNAS, dentre outras militantes. A oportunidade de me juntar a elas acontece e se desenvolve a partir da ação de outra mulher, Marisa Salles, do ArqFuturo, que, de modo singular, vem construindo reflexões em torno de uma plataforma que se propõe a pensar o futuro das cidades.

O pressuposto dessa articulação, que consegue agregar outras pessoas, foi definir uma estratégia de ação que pudesse ser viabilizada nas regiões onde cada uma de nós atua. Marisa se propõs a buscar recursos financeiros que contribuíssem de imediato para demandas que já estavam claras. No caso das favelas e periferias, a resposta urgente à pandemia e à necessidade de isolamento passa por garantir comida para quem vai ter fome com a perda do trabalho e, por consequência, da renda.

Enquanto o processo vai sendo construído assim — a partir da necessidade específica das mulheres dessa articulação —, definimos na Redes da Maré qual seria a nossa estratégia nesse momento. Aqui do meu lado, na minha casa, nos meus pensamentos mais íntimos, o medo é algo que aparece com algumas faces. Penso na energia que preciso despender para colocar em pé uma ação que possa encarar o tamanho das dificuldades enfrentadas pelos moradores das favelas da Maré; dificuldades amplificadas pela crise trazida pelo coronavírus.

Ao mesmo tempo, o receio bate também pelo fato de eu precisar mudar minha rotina de quarentena, que até então era de completo isolamento. Devo ir à Maré para me juntar às outras pessoas que, como eu, vão estar numa ação voltada aos que mais precisam de ajuda neste momento. Por um lado, bate um sofrimento e uma tristeza que me consomem quando penso no compromisso e na coerência de tentar fazer algo frente à gravidade do que pode acontecer com essa população; e, por outro, sofro com a dúvida de, quem sabe, estar negligenciando a minha própria saúde.

Logo que sou dominada por esses pensamentos, vejo notícias a respeito das condições de vida de muitas pessoas nesse exato momento. Ouço que a fome chegou de forma severa para alguns. Isso me aflige. E volto a refletir sobre algo inegável, que é perceber como vivemos num país descuidado com os direitos da sua gente.

 Da janela do meu quarto, enquanto tento dormir, sou despertada para outra realidade que se intensifica no contexto atual. Ouço gritos de um homem xingando uma mulher. A briga chama atenção pela violência expressa nas palavras e na tentativa de agressão física, que fica clara pela resposta da mulher, que, em tom muito alto, ameaça ir à delegacia.

São as tramas da vida se impondo e trazendo facetas de muitos lados, de muitas realidades. Violências que formatam vidas e relações numa mesma cidade. Sou dominada pelo desejo de agir, de não me aquietar, simplesmente. Sou tomada por um impulso que me guia para algo concreto entre a preocupação com as medidas de proteção contra o coronavírus e estar à disposição de um projeto coletivo que toma corpo dentro da Redes da Maré: “Maré Diz Não ao Coronavírus.”

Após muitas conversas, definimos um número inicial de 6 mil famílias mais pobres a serem alcançadas por uma ação básica de prover imediatamente uma cesta de alimentos e kits de higiene pessoal e de limpeza nas dezesseis favelas da Maré. Decidimos também preparar duzentas refeições diárias para a população de rua formada na região há alguns anos e que, na sua maioria, faz uso abusivo de álcool e outras drogas. Além disso, é necessário pensar uma forma de garantir renda para mulheres do projeto “Maré de Sabores”, que perderam seus ganhos mensais quando todos os eventos que realizavam tiveram de ser cancelados em razão da crise do coronavírus. 

Essas iniciativas vão compor um mosaico de ações para responder a algo revoltante e que não pode deixar de ser modificado após o momento que vivemos. Algo que a população do Rio de Janeiro, especificamente a que reside nas favelas e nas periferias, sente na pele de forma recorrente: a falta de políticas públicas mais básicas. Ouço de algumas e alguns que não seremos as mesmas pessoas após a pandemia. Que algo se move de forma positiva no planeta. Que no plano objetivo a sociedade será convocada a rever seu funcionamento. E me olho, me sinto e indago: será? Flutuo entre ser e estar. E vamos seguindo. 

***

Eliana Sousa Silva nasceu em Serra Branca (PB) e morou na Maré durante 25 anos. É autora do livro Testemunhos da Maré (Aeroplano, 2012) e fundadora da Associação Redes de Desenvolvimento da Maré, da qual é diretora.

A Redes da Maré promove mais de vinte projetos de desenvolvimento local, arte, cultura e educação nos territórios da Maré, com destaque para o Curso Pré-Vestibular Comunitário da Maré, o Programa Criança Petrobras na Maré e o movimento “A Maré que Queremos”, com mobilização social e fórum permanente para debater a melhoria da qualidade de vida nas comunidades da região.

Recebeu diversos prêmios, entre os quais o Empreendedores Sociais, da Ashoka (2000). Atualmente é também consultora do Canal Futura e da Associação Cidade Escola Aprendiz, de São Paulo, e está escrevendo um livro sobre a criação da Redes da Maré, que será publicado pela Zahar.

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