Diários do isolamento #22: Jessé Andarilho

13/04/2020

Diários do isolamento

Dia 22

Jessé Andarilho

 

Esta semana tive que sair para comprar alguns produtos no mercado aqui perto da minha casa. Aprendi desde pequeno que “uma pessoa prevenida vale por duas” e que “segurança é prevenção”.

Coloquei uma calça jeans, uma camisa de manga comprida e uma máscara que ganhei no hospital quando fui levar meu sogro para uma das sessões de radioterapia.

Parecia que eu estava usando uma camisa do Lula no meio de uma passeata pró-Bolsonaro. Todo mundo me olhando. Achei até que tinham colado uma placa nas minhas costas com algum texto engraçado, como aqueles que a galera do colégio sempre fazia para pregar peças nos coleguinhas na hora do recreio.

Pois é, estava tudo estranho. As ruas do bairro estavam cheias, até engarrafamento peguei. Muito carro e pessoas transitando pelas calçadas.

O mais engraçado foi quando entrei no mercado. As pessoas se afastavam de mim e algumas até falavam coisas como “Tá amarrado em nome de Jesus”. Outras diziam que eu estava igual a um palhaço e querendo aparecer.

Tudo que eu não queria naquele momento era aparecer. Eu queria desaparecer da rua. Queria voltar para a minha casa e ficar com a minha família até tudo isso passar. Mas infelizmente tem coisas que são fundamentais e que ainda é preciso sair pra comprar.

O mais estranho foi a reação da caixa do supermercado enquanto passava minhas compras. Ela estava sem proteção alguma. Correndo um risco enorme. E até ela ficou me olhando como se eu fosse alguém de outro planeta.

Sei que é semana de Páscoa, que a galera come peixe e que as pessoas têm a tradição de comer ovo de chocolate. Tradição é uma parada muito difícil de quebrar, mas até o papa deu um papo de que é preciso estar vivo para que as tradições sejam mantidas.

Fiquei um tempo da minha vida coordenando e ajudando os grupos jovens da igreja católica em Antares. Sempre ouvi dizer que a voz do santo padre, o papa, é a voz de Deus aqui na terra. Só que, no momento atual, o papa mandou ficar em casa, o bispo mandou ficar em casa e até os padres estão dizendo pra ficar em casa. Mas meus amigos católicos fervorosos, os mesmos que me julgaram quando parei de ir para a igreja, dizendo que eu me desviei da palavra, estão ignorando as vozes santas e repetindo e divulgando nas redes as coisas que o presidente está dizendo. Como pode a voz do Messias, que não é o Cristo, valer mais do que a voz de Deus na terra? Estranho, mas vou fazer o quê?

Voltando à história do mercado. A caixa passou todos os meus produtos e, quando fui pagar, ela me perguntou:

– É coronavírus?

– Não, é bafo. Só vim aqui porque meu enxaguante bucal acabou.

Peguei minhas compras, entrei no carro e voltei pra casa rindo pra não chorar com tudo isso.

 

***

Jessé Andarilho nasceu em 1981 e foi criado na favela de Antares, no Rio de Janeiro. Filho de vendedores ambulantes, trabalhou com diversas atividades na sua comunidade, até ler seu primeiro livro, aos 24 anos. Foi quando, no trajeto de aproximadamente três horas que fazia de trem de sua casa até o trabalho, passou a usar o bloco de notas do celular para contar histórias. Dessas anotações surgiu o romance Fiel, publicado pela Objetiva em 2014. Em 2015, foi convidado para integrar o grupo de redatores da novela Malhação, da TV Globo. Foi diretor de reportagem do programa Aglomerado, da TV Brasil, e produtor da Cufa – Central Única das Favelas. Fundou o C.R.I.A., Centro Revolucionário de Inovação e Arte, e o Marginow, com a proposta de dar visibilidade aos artistas da periferia. Em 2019, publicou, pela Alfaguara, seu segundo romance, Efetivo variável. Atualmente, Jessé Andarilho realiza palestras em todo o Brasil, contando um pouco da sua história e mostrando como sua vida foi transformada pela literatura.

 

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