Existem inúmeras práticas meditativas. E no fundo todas elas têm muito em comum. Existem inúmeras práticas diárias, aliás, que podem ter seu componente meditativo. Lavar louça. Jardinagem.
Qualquer coisa que te permita desligar ainda que brevemente a dita Rede Neural Padrão, aquele ruído de fundo do teu cérebro falando sozinho e vagando bem doido de um tema pra outro. Sem parar.
Basta prestar atenção em alguma coisa. Alguma atividade.
Pra mim sempre foi música. Especialmente, depois dos meus trinta anos, improvisar no piano. No violão, instrumento que eu estudei de verdade, anos a fio, eu continuo neurotizando, pensando em técnica, cuidando de detalhes. E me frustrando. Piano é um instrumento mais tolerante. E como eu não sei tocar de verdade, isso me dá uma liberdade bem estranha. Uma liberdade de abandonar perfeccionismos e só ir atrás das ideias que vão aparecendo como que sozinhas nas mãos.
E por algum tempo meu cérebro “cala a boca”, e eu acho alguma paz.
A minha parca experiência com meditação de verdade, de um tipo que os japoneses chamam de shikantaza, data de logo depois da eleição presidencial.
Por alguma razão (quem poderá imaginar?), eu comecei a pensar nos dias seguintes ao resultado da eleição que a minha estabilidade mental podia estar em perigo a médio prazo. Ainda não tenho medo de surtar. Mas tenho medo da constância da infelicidade. Da contrariedade permanente. Do azedume da realidade.
Agora (quem poderia de fato imaginar?) trancado em casa, vendo o mundo derreter de vírus enquanto os palhaços seguem escolhendo o caminho da morte, eu me vejo na súbita companhia virtual de bilhões de pessoas que precisam evitar essa mesma instabilidade. Que precisam desligar o ruído de fundo da vida, da internet, do whatsapp e, na real, do seu próprio cérebro.
Mas essa crise me pegou numa posição administrativa na universidade (vice-coordenador de pós-graduação). E eu me vi na situação de ter que combater meio que diariamente as constantes tentativas de fragilização, desorientação e destruição com que estamos sendo permanentemente brindados por um cidadão que enquanto isso brinca de imitar o Cebolinha pra irritar a maior potência do mundo. E até agora, no meio da raiva, da tristeza, do medo (que mundo é esse que vem pra quem está chegando?) e de tudo mais, o que não me foi dado viver até aqui é o tal tédio do distanciamento social.
Tem sido corrido.
Enlouquecido.
Eu ainda assim me obrigo a achar no mínimo vinte minutos pra somente me concentrar em estar onde estou. Uma, duas vezes por semana tenho conseguido improvisar no piano. (Os vizinhos não desgostam…)
Mas tenho sentido muita falta daquela outra prática com certo teor meditativo que eu descobri depois dos trinta anos de idade. A única, de todas, que me permite calar os resmungos da minha cabeça e ao mesmo tempo me manter atado ao mundo verbal, discursivo.
Descontado um texto (muito bom) para a revista Piauí, há meses eu não traduzo nada… parece, pra mim, um símbolo desse isolamento. A atividade que me permite deixar de me ouvir pra ouvir outras pessoas (como eu já disse aqui em outro texto) e possibilitar outros, novos, diálogos. Parece especialmente doloroso não poder me dedicar a isso nesse momento de solidão, sim, mas em que nunca precisamos tanto contar com a generosidade uns dos outros.
Chris Ware me aguarda, aqui do lado.
Você, leitora, pode nem saber. Mas me aguarda também. E eu estou aqui, à espera de poder conversar com vocês pela voz de Ware. À espera de poder me fechar no meu silêncio e fazer o livro dele falar.
***
Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.