Diários do isolamento #27: Alejandro Chacoff

18/04/2020

Diários do isolamento

Dia 27

Alejandro Chacoff

 

Há mais de um mês estamos enclausurados. Sempre gostei de chegar em casa, e o apagamento necessário desse gesto — o de estar fora de casa para finalmente chegar a ela — me gera certo estranhamento. O que aperta o pé se não os sapatos que temos que colocar para sair?  O ato de tirar os sapatos foi substituído, por ora, pelo prazer sensorial do hidratante nas mãos ao fim do dia. Depois de tanta fricção, as juntas dos meus dedos finalmente racharam, e antes de deitar passo um naco exagerado de Creme de Corps, uma pasta suntuosa e amarelada que jazia acima da pia do banheiro há tempos mas na qual eu nunca tinha reparado.

Pensei que a casa fosse um lugar relativo, que sem outros pontos de referência ela se trivializaria. Assim como o corpo saudável só é valorizado no contraste da doença, imaginei que sem a rua a casa se tornaria banal. Mas ocorre o inverso: os gestos cotidianos possuem agora uma aura mais exaltada. Não é apenas a sensação de ardência, o hidratante penetrando as feridas antes de dormir — há também o odor de Lysoform no chão da cozinha após a faxina, a respiração mais ofegante das cadelas enquanto sonham (as patas delas mexendo-se com tremeliques, em homenagem a memórias lonqínquas de passeios).

Estou sob um estado de hiperatenção Knausgaardiano — poderia passar páginas descrevendo a nuvem densa que o pingo de leite faz quando ele cai no chá. As refeições são os momentos mais ritualísticos. Organizamos os ingredientes, um corta e o outro tempera, seguimos as instruções das receitas sem grandes problemas. Nunca estivemos tão atentos à lista de compras; nunca comemos tão bem.

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A cada duas semanas, porém, esse domesticismo é interrompido por outro ritual, o de receber as compras de mercado. As luvas, o álcool 70, as máscaras, a distância mantida entre os corpos — tudo isso se choca brutalmente com esse idílio doméstico, de certa forma o ridiculariza. Me encho de terror nesses momentos, de uma forma bastante patética. A casa não deixou de ser um lugar relativo. Pelo contrário — o contraste entre o que está lá fora e o que está aqui dentro se tornou maior. O caráter de refúgio da casa ficou mais ressaltado.

Isso é mais confuso do que pode parecer à primeira vista. Pois se a casa é refúgio, ela também se tornou de repente um lugar de espera, e isso ela jamais tinha sido. Esperávamos para chegar em casa logo; agora esperamos para sair dela logo. Talvez venha daí o histrionismo, o ar vagamente artificial, desse domesticismo exaltado. O idílio doméstico verdadeiro depende em parte desse mundo que existia antes, dos restaurantes e bares cheios, do perigo (moderado ou alto, mas nunca proibitivo) das ruas, das picuinhas do trabalho, das ameaças veladas e da chance de simplesmente levantar e sair. 

Por ter se tornado um lugar de espera, a casa tem no momento o torpor enganoso de locais de passagem. Por isso é tão difícil manejar o tempo. É esse tempo escorregadio das salas de embarque de aeroportos, onde tudo parece lento, quase em suspensão, até que, ao ir ao banheiro, me dou conta de que perderei o vôo. Me levanto de manhã e o dia me parece infinito. Prova disso são as minhas ambições de leitura, que têm retrocedido ao fim do século XVIII e XIX. É a sensação de infinitude da manhã que me cria um desejo de ler romances longos de um passado remoto; e me surpreendo quando, entre os afazeres do dia, de repente a janela de tempo que antes me parecera imensa fica mais estreita e se fecha — quando olho, já escureceu e sequer comecei a ler.

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É uma ironia trágica, mas existe um outro momento em que o tempo se deforma desse jeito: quando pegamos uma gripe.  A gripe gera o mesmo estado de exceção da quarentena. A canja de galinha no fogão, o chá fervido e os livros debaixo do abajur ganham uma aura distinta. Ficamos cientes de cada gole rasgando a garganta, cada movimento cansado de braço, o corpo é valorizado no contraste da doença. Vivemos para o cotidiano, para uma sequência de dias sem propósito e selados a vácuo. É claro que nada é decidido durante esses dias, pois seria ridículo fazer muitos planos; o mundo exterior a rigor não existe.

É como se, para fugir da gripe, estivéssemos agora recriando o seu mundo, estendendo-o indefinidamente, e até a instrução que chega é parecida. Tem que ter paciência, tem que esperar passar, logo mais a vida poderá ser retomada. Mas aí o interfone toca, e começamos a ajeitar o álcool outra vez, a forrar a mesa, a encher a pia de água e detergente. Da última vez, quis dar uma gorjeta grande para o rapaz que trouxe a mercadoria, mas o meu dinheiro vivo tinha acabado, e não tenho coragem de sair na rua só para sacar.

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Alejandro Chacoff nasceu em Cuiabá, em 1983, e mudou-se para os Estados Unidos aos dois anos de idade. Viveu no Chile, Inglaterra e Argentina, antes de voltar para radicar-se no Rio de Janeiro, onde desde 2016 trabalha como crítico de literatura e ensaísta da revista piauí. É também colaborador de publicações como The New Yorker, n+1, The Guardian e The Atlantic. Apátridas, publicado pela Companhia das Letras, é o seu primeiro romance.

 

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