Diários do isolamento #30: Elvira Lobato

21/04/2020

Diários do isolamento

Dia 30: Tempo, tempo, tempo!

Elvira Lobato

 

Cinco semanas confinada em casa. E que proveito tirei desse tempo? Às vezes sou tomada pela angústia de estar perdendo dias preciosos de vida. Não sou pessimista. Muito pelo contrário. Costumo ver o mundo com um otimismo considerado irritante por alguns. Mas, diante da hipótese de poder ser varrida do planeta pela pandemia, sinto uma urgência de tirar o máximo de proveito de todos os minutos que me restarem, de sugá-los até a última gota.

Mas, nem sempre consigo transformar a ansiedade em algo produtivo. Estou ocupando boa parte dos meus dias com uma multiplicidade de tarefas banais que não resistirão ao tempo. Ou seja, se eu passar desta para melhor, minhas últimas produções na terra terão sido coisas como: um bolo de chocolate meio amargo, que aprendi a fazer; flores de papel crepom de inspiração portuguesa; um bordado de pássaros em ponto de cruz para fazer (acreditem?) uma capa nova para minha máquina de costura.

E cadê o romance policial que eu poderia ter escrito? Cadê a reportagem reveladora sobre o desmatamento da Amazônia, cuja apuração foi interrompida pela pandemia? Cadê o livro sobre a trajetória do meu pai, que deixou o interior de Minas com dezessete filhos para ganhar a vida na periferia de Belo Horizonte?

Aliás, foi meu pai que inoculou em mim essa urgência em ocupar o tempo. Ele nunca permitiu que os filhos ficassem ociosos um minuto sequer. A lembrança mais remota que tenho da minha infância — eu devia ter quatro ou cinco anos — é de meu pai me questionando, bem cedo, sobre o que eu havia feito naquela manhã. Eu tinha acabado de acordar e nem tinha penteado os cabelos. Pensei um pouco e fui descrevendo bem devagar o que havia feito, para valorizar a produção: acordei... escovei dos dentes... lavei o rosto.... tomei café. A resposta dele veio rápida e cortante como um golpe de adaga: então você não fez nada!

Desde aquele diálogo, preciso estar em permanente atividade para me sentir em paz comigo mesma. Meu pai se foi há 25 anos, mas ainda não deletei a ordem que recebi na infância. Bastava ele aparecer no portão de casa para toda a meninada buscar algo pra fazer. Disputávamos à tapa a vassoura e o rodo. Não me queixo desse condicionamento. Nem julgo meu pai um explorador da mão-de-obra infantil. A infância dele foi mil vezes mais difícil que a minha.

Aproveito o tempo de escrever a coluna para reavivar as lembranças do meu pai. E me dou conta cada vez mais do quanto tenho em comum com ele. Era meu pai quem cortava nossos cabelos, quando crianças. Era ele quem furava as orelhas das filhas. Também era ele quem nos aplicava injeção, quem nos dava os vermífugos na madrugada e quem nos aplicava os castigos.  A casa onde nasci foi construída por ele. Minha mãe ficava 24 horas por dia ocupada com os afazeres domésticos e com os filhos recém-nascidos – e todo ano aparecia mais um.

Herdei do meu pai o interesse por múltiplas tarefas. Isso pode ser uma vantagem para enfrentar adversidades, mas dificulta o foco. Um dos meus livros favoritos se chama Como fazer quase tudo, e foi editado pela Reader’s Digest. Ele reúne centenas, talvez milhares de verbetes, com pílulas de informação. Nos ensina, entre outras coisas, a fazer parto de emergência; construir parede de concreto, socorrer vítimas de raio, remendar pneu de bicicleta e assar biscoitos crocantes. São quase quinhentas páginas em letras miúdas. Dá para ficar um dia inteiro perdido nesse labirinto de informações.

Consola-me saber que até os artistas mais renomados estão com dificuldade para produzir obras novas durante o confinamento, e também se sentem perdidos. Recentemente, vi o depoimento do meu rapper predileto, o Emicida (Leandro Roque de Oliveira), sobre suas dificuldades para concluir uma tarefa. Que ironia! Ter tanto tempo de sobra e não saber como ocupá-lo.

Meu marido pondera que estou rigorosa demais comigo mesma, e me lembra que continuo a fazer máscaras de tecido para distribuição às famílias carentes da Baixada Fluminense. De fato, passo até cinco horas por dia nessa tarefa. Na semana passada, escrevi que estava de mãos atadas porque todo o estoque de tecidos e de elástico que eu tinha havia se esgotado. Mas recebi doações para prosseguir o trabalho. Também descobri uma loja no bairro do Rio Comprido que vende tecidos. A compra é feita por telefone, mas o cliente tem que encontrar o vendedor em um ponto combinado, fora da loja. Encomendei dez metros de tecido para forrar as máscaras. Minha conversa com o atendente parecia envolver coisa pra lá de suspeita:

 

- Quero dez do branco. Como eu faço pra pegar?

- Um rapaz de máscara vai esperar pela senhora na rua dos fundos.

 

Enquanto escrevia este texto, recebi muitas fotos de moradores humildes de Nova Iguaçu usando as máscaras que eu fiz. Foi uma injeção de ânimo. Volto para a máquina de costura, emocionada e com energias renovadas.

Ia me esquecendo de contar: há tempos trouxe do Amazonas uma raiz de cúrcuma, que se usa para temperar comida. Plantei um pedaço dela em um vaso na minha varanda; a planta cresceu e, para minha surpresa, deu uma linda e exótica flor branca. E eu que nem sabia que cúrcuma dava flor. Esta informação não está no meu livro sobre quase tudo.

 

***

Elvira Lobato é jornalista e trabalhou na Folha de S.Paulo por 27 anos. Venceu alguns dos principais prêmios de jornalismo no Brasil, com destaque para o Prêmio Esso em 2008 pela reportagem sobre o crescimento do patrimônio da Igreja Universal. Antes da Folha, trabalhou para o Diário de NotíciasGazeta de NotíciasÚltima Hora, e foi colaboradora do Jornal do Brasil e do Opinião. Elvira é autora de Instinto de repórter, publicado em 2005. Em 2016, foi homenageada pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) pelo conjunto de seu trabalho jornalístico. Em 2017, publicou Antenas da floresta: a saga das tvs da Amazônia pela editora Objetiva.

 

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