Diários do isolamento #32

23/04/2020

Diários do isolamento

Dia 32

Jarid Arraes

 

 

Quinta, dezesseis de abril, dezessete horas

Uma criança chorou alto, gritou, esticou a voz e pareceu um pássaro, uma rasga-mortalha, um apito. Fez o papel de aviso. Nas varandas e janelas, começaram a bater em panelas, tocar cornetas, gritar burro incompetente miliciano assassino fora chega. Estranhei, os números no relógio não marcavam oito e meia, ainda estava claro, ainda via passarinhos pousando na rede de proteção. Me senti espalhada pela mesa, uma bagunça de desentendimento, um punhado de medo, o que foi dessa vez. Procurei no Twitter o que poderia ter cutucado as pessoas e seus ecos e vi que o então ministro da saúde tinha sido demitido. Voltei ao meu estado normal, que é o normal de quase sempre: uma espécie de preocupação que se embola no meu cérebro, que insiste em buscar estímulos, mas que não consegue se manifestar fisicamente. Pouco sinto a preocupação se manifestar no meu corpo. É um parasita tão quieto. Meu corpo é comido, os dentinhos sugando, haja sangue e miolo na barriga. Mas não senti grandes sentimentos, nem mesmo sentimentos equivalentes. Os meus sentimentos estavam no volume cinco da televisão. Baixinhos, conformados. Mais uma coisa, eu pensei, mas também é só mais uma coisa. Amanhã tem outra, e no dia seguinte e durante quanto tempo, cara, não consigo nem imaginar quanto tempo, quanto tempo ainda falta. Corpo quieto, um pensamento de todo mundo já esperava por isso, pode ser que eu tenha o impulso que me levaria até a varanda para gritar, só que também tenho o freio. Mas quando alguém berrou a palavra mito, dei uma risadinha quando alguém gritou a palavra gado. Entendi que não é a tristeza, é a raiva. Preciso sentir raiva. São dias de parede amarela, mas meus olhos enxergam tons pastéis. Os prédios que enxergo todos estão em cores baixas, interessante, mas nunca tinha falado assim sobre esse fato. Tudo parece tão quieto, como eu, e tão barulhento, como as ruas. 

 

Sexta, dezessete de abril, vinte e uma horas

Já é a terceira pessoa que sigo e que, de novo, encontrou algum amigo durante o isolamento. Durante seu próprio isolamento. A justificativa foi a mesma: estava triste, precisava do ar da rua, precisava caminhar, tomar sol, aproveitei a ida necessária para ir bem perigoso. Dessa vez o sentimento se manifesta no meu corpo. A raiva me diz posta alguma coisa, dá uma indireta, fala da irresponsabilidade, diz que a tristeza vai ser maior quando a amiga a mãe a avó estiverem mortas, como podem não aguentar uma tristeza que evita mortes, se acostumem com a tristeza, a tristeza é parte da vida, é parida e nutrida porque é vida, quis escrever nas alturas da minha raiva, volume cinquenta, os vizinhos se irritariam, seríamos paredes e pisos incomodados pelo único sentimento que me tira do bege. Mas não escrevi, não falei. Continuo pensando na tristeza, me perguntando quanta gente saía quase todos os dias, todos os finais de semana, e tantas que bebiam em todas essas saídas, para abaixar o volume da tristeza. Esse é o problema de maquiar as vivas desgraças internas; quando se passa o algodão e a pintura escorre pela pia, só tem tristeza. Eu não uso maquiagem há mais de um mês, mas vou me maquiar para participar de duas lives. Será que estou triste? Eu já falei que estava triste? Talvez não tristeza, talvez desamparo, eu disse, talvez caldeirão borbulhando quando o fogo cresce. Eu escrevi que estava triste? Não estou, se disse que estava. Estou tom pastel, rolando o Twitter de cima a baixo, bebendo chá, o celular no mudo. Não gosto de sentir raiva, mas quando sinto raiva, eu gosto. Apesar da raiva, apesar dos stories e newsletters dando a notícia do encontro entre amigos, só dois, só aqueles que moram bem ali, só porque precisava pegar uma coisa, apesar da raiva, eu acho que não gostei de sentir tanto. Voltei para meu jogo, aquele em que invento vidas diferentes.

 

Sábado, dezoito de abril, dez horas

Eu e minha mãe estamos desencontradas. Não consigo falar com ela pelo telefone, mas sei que ela não está saindo. Talvez esteja recebendo o cara que entrega as marmitas, o carroceiro que tira a terra do terreno ao lado da casa, a vizinha, talvez eu tenha que subir meu tom, subir uma oitava. Mainha, tu num tá inventando de sair não, né? Deixe de pantim, né pra receber ninguém não, oxe, pois deixe a terra, num vai morrer não, tu quer me matar é, eu aqui longe. Ao invés disso, vejo o oi, filhinha no Whatsapp. Minha sogra quer sair, quer resolver problemas, meu namorado quase diz pois pode já escolher a cor do caixão. É tristeza ou raiva? O jeito como falamos, é um jeito triste ou irritado? Tristeza também irrita, eu acho. É uma cocerinha, sabe uma agoniazinha, e você coça coça usa as unhas depois esquece e taca a mão nos olhos, eu já disse isso, depois a coceira está nos olhos e você diz que são lágrimas porque está ardendo. Mas pode ser tristeza.

 

Domingo, dezenove de abril, quatorze horas

O vento vem conversar comigo mais uma vez. Os vidros chacoalham, ouço um som de sopro gigante lá fora. Nunca tive medo do vento, da tempestade, do trovão e do raio. Quando viajo de avião, sinto até uma pequena alegria em olhar pela janelinha e ver a natureza tão próxima. Gosto desse vento que balança as grandes coisas, gosto das imagens do ar e da energia impaciente porque quer ser descarregada. Um dia desses, depois do último diário, estava frio quando acordei. Fui até a sala e meu cachorro me acompanhou; vimos a varanda aberta e o sol entrando até a mesa de onde escrevo. Peguei meus chinelos espalhados e pensei, vou fechar essas portas antes que eu fique triste por não sair, eu amo sair pela cidade quando está frio. Aí me virei e meu cachorro estava parado sob o sol, os olhos fechados, sentia o vento.

 

Segunda, vinte de abril, dezoito horas

Lembrei da foto que postei, a foto do meu cachorro molhado depois de seu segundo banho na varanda. Tinha um bicho de pelúcia na boca, uma cara de alegria, já tinha se esfregado no sofá, no chão, em todo canto pra tentar se enxugar, pra descarregar a excitação, o rabo abanando que nem ventilador. Muita gente pensa que rabo abanando é sempre sinal de felicidade, mas não é. O rabo abanando é excitação, que pode vir da ansiedade e do medo também. Cachorro latindo com medo também pode abanar o rabo. Se um cachorro está grunhindo e mostrando os dentes pra você, mas o movimento do rabo te deixa em dúvida e quem sabe você toque nele, não faça. Tristeza, ansiedade e raiva fazem coisas parecidas. Estou em dúvida se minha tristeza está desligada ou abafada debaixo de dezenas de almofadas que confortam minha revolta. Eu falei que não estava triste, que a raiva me movimenta, mas agora não sei qual bicho me morde. Não estou meu normal que é o normal de quase sempre; estou dentro da normalidade de quem escolheu ficar em isolamento e escolheu acompanhar as notícias como se fossem comida, eu mesma sanguessuga, solitária, inchando a barriga, estufando o umbigo. Alguém sabe me dizer o que estou? Digamos que minha cauda é todo meu diário do isolamento. Você sabe dizer se estou triste?

 

Terça, vinte e um de abril, meio dia

Na sexta, li o primeiro livro durante meu isolamento. Já falo meu isolamento, pronome possessivo, primeira pessoa do singular. Não posso dizer isolamento nosso, porque vejo social por todas as partes. Esse isolamento aqui, esse que eu vivo, é meu. Eu escolhi, mas muita gente não escolheu o seu. O homem que parece ter sessenta e poucos, o que cantou no prédio da frente, parece ter escolhido como eu. Agorinha, enquanto escrevo, ele apareceu na janela e demorou alguns minutos observando a rua, os olhos mirando nas cabeças que se movimentam. Queria gritar, ei tu tá triste, com raiva, tá o quê?

 

A palavra “triste” apareceu seis vezes nos meus diários anteriores. “Raiva”, três vezes. Mas é preciso escutar o tom dos textos, as notas, entender os arranjos, aprender os acordes.

Faz isso por mim? Me diz como eu estou.

 

***

Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nomeAs lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.

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