Diários do isolamento #34: Alejandro Chacoff

25/04/2020

Diários do isolamento

Dia 34

Alejandro Chacoff

 

Antes de ser executado com uma injeção letal, Timothy McVeigh, que fora condenado pelo assassinato de 168 pessoas num ato terrorista em Oklahoma, pediu um pote de sorvete de menta com pedacinhos de chocolate. Ricky Ray Rector, condenado à morte por dois assassinatos, pediu um bife, frango frito, Kool-Aid de cereja, e uma fatia de torta de pecã, que ele acabou não comendo. Teresa Lewis, uma mulher nascida na Virgínia, condenada à morte por assassinato e outros crimes, também pediu frango frito, além de ervilhas com manteiga, torta de maçã, e uma latinha do refrigerante Dr. Pepper.

Soube desses detalhes após ver num jornal a série do fotógrafo neozelandês Henry Hargreaves, chamada “No Seconds”, uma montagem inspirada nas últimas refeições de americanos condenados à morte. O título da série — uma tradução aproximada seria “sem repeteco” — tem um tom que poderia parecer debochado ou frívolo, mas seria precipitado descartar a obra por isso. Os retratos — sacados do ângulo de cima, como em fotos publicitárias ou críticas gastronômicas — mostram pratos suculentos e apetitosos, e se a pessoa vendo as fotos estiver com fome, a reação natural é desejar essa comida que se vê no prato. Ao mesmo tempo, há ao lado de cada imagem culinária uma legenda com a cidade natal e os crimes cometidos pelo condenado, e também a forma de sua execução. Ao lado do sorvete de McVeigh, por exemplo, lê-se: 33 yrs; Indiana; 168 counts of murder; Lethal injection.

O balde de sorvete inspirado pela refeição de McVeigh jaz sob uma toalha de mesa azul e branca, e ao seu lado estão uma colher e um guardanapo branco. Há certa limpidez no retrato, uma inocência meio pasteurizada: poderia ser uma foto postada no Instagram. Essas fotos de Hargreaves são desconcertantes porque geram no espectador não só uma reticência estética (um sentimento comum ao se deparar com obras de arte contemporânea), mas também uma reticência moral. Como conciliar um sorvete de menta com pedacinhos de chocolate, esse item tão infantil, com o ato sombrio de McVeigh? Frente a essas imagens, não sabemos bem como reagir.  

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Uma das perguntas subjacentes à série de Hargreaves é a seguinte: a última refeição dada pelo Estado é um gesto que humaniza ou degrada? É um gesto sádico, empático, ou apenas barroco? Por um lado, sabe-se que em momentos difíceis se perde o apetite, e colocar um prato apetitoso na frente de um condenado à morte pode simplesmente se tornar mais uma forma heterodoxa de punição. Sabe-se também que comer bem ou de forma variada é um hábito associado à elite — e historicamente, os condenados à morte nos Estados Unidos (como provavelmente em qualquer lugar) são em sua maioria pobres. De modo que a pressão por fazer essa escolha culinária pode também se tornar só mais uma forma de humilhação (a ubiquidade do frango frito, um prato barato, nos retratos escolhidos por Hargreaves, é notável).

Por outro lado, a comida humaniza. A pergunta tão comum em cursos de escrita (qual o prato preferido de seu personagem?) pode ser um clichê, mas ela tem algo de verdadeira. As ervilhas com manteiga, a pequena fatia de torta de maçã, e o Dr. Pepper de Teresa Lewis tem um ar de memória de infância, uma qualidade que Hargreaves explora na forma delicada em que apresenta o prato, com porções comedidas e bem arrumadas. Os anarquistas Sacco e Vanzetti (cujas condenações errôneas foram admitidas pelo estado do Massachussets em 1977) pediram sopa, carne, torradas e chá; Hargreaves coloca os itens frugais sobre uma mesa rústica, de madeira. Victor Ferguer, um rapaz de 28 anos de Iowa (sequestro e assassinato; morte por enforcamento) pediu uma única azeitona com caroço, que o fotógrafo coloca num pires elegante, como se desse um palco para uma performance minimalista de vanguarda. Ronnie Lee Gardner (invasão domicilar e assassinato; morte por fuzilamento) pediu rabo de lagosta, um bife, sorvete de creme, e torta de maçã, além de um dvd da trilogia do Senhor dos Anéis, para assistir durante a refeição. Hargreaves amontoa tudo numa marmitinha de plástico, dando um ar de improviso adolescente à escolha. Até Angel Nieves Diaz (assalto à mão armada, assassinato, sequestro; injeção letal), uma mulher de 55 anos que recusou a sua última refeição, ganha uma interpretação do artista. Hargreaves coloca talheres de plástico e uma bandeja de plástico azul absolutamente vazia sob uma mesa de metal que reproduz o aspecto de uma mesa de cárcere.

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Me deparei com a série de Hargreaves no dia 10 de março, um pouco antes de nos isolarmos, e nesse tempo distorcido da quarentena, sinto como se conhecesse a obra há mais tempo. Talvez seja porque a imagética explorada pela montagem — de comida e morte — tenha ganhado mais intensidade na pandemia. Os milhares de caixões, as valas comuns, o exército transportando corpos, a impossibilidade de ritos fúnebres dignos, se misturam a imagens de bolos, paellas, medalhões de filé mignon, macarrões à carbonara, a todo esse frenesi de comida caseira (do qual certamente não me excluo).

Essa justaposição gera desconforto, e é justamente esse tipo de desconforto que Hargreaves parece querer explorar em sua série. A pergunta que ele provoca no espectador — “como devo me sentir em relação a essas imagens?” — é a pergunta com a qual nos deparamos diariamente, em meio a outras justaposições vagamente obscenas na tela: o cachorrinho engraçado dividindo espaço com a tosse do presidente; a mensagem religiosa de um parente distante interrompida pelo vôo de um carro entrando em combustão. Sem saber como responder a essas justaposições, sucumbimos a memes, o humor dispersando e neutralizando as negociações sentimentais mais difíceis. Em suma, nos tornamos menos humanos.

É verdade que os retratos de Hargreaves podem ser lidos apenas como um meme mais elaborado, como outra variedade de uma lista do Buzzfeed (“os dez pratos dos serial killers mais famosos”). Mas, sob certo ângulo, os retratos podem também representar um desafio e recusa dessa cultura imagética que neutraliza os sentidos, tornando-os cada vez mais amortecidos. A forma como Hargreaves mistura nosso desejo pelos pratos à repulsa de qualquer identificação com os representantes dos mesmos pratos é o que cria uma dissonância rica. Não queremos nos identificar com Ted Bundy (que, sem especificar um desejo, comeu a última refeição tradicional do cárcere - ovos, bife, torradas com manteiga e geléia, batatas, copo de leite, copo de suco). Não queremos dotar esses condenados de complexidade, mas a curadoria sutil de Hargreaves nos convida a considerar esses pratos, a fitar-lhes, e no fim a estabelecer o óbvio — que até por trás desses assassinos, havia desejos, aspirações, infâncias mal resolvidas. Pessoas, enfim.

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Alejandro Chacoff nasceu em Cuiabá, em 1983, e mudou-se para os Estados Unidos aos dois anos de idade. Viveu no Chile, Inglaterra e Argentina, antes de voltar para radicar-se no Rio de Janeiro, onde desde 2016 trabalha como crítico de literatura e ensaísta da revista piauí. É também colaborador de publicações como The New Yorker, n+1, The Guardian e The Atlantic. Apátridas, publicado pela Companhia das Letras, é o seu primeiro romance.

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