Diários do isolamento #36: Jessé Andarilho

27/04/2020

Diários do isolamento

Dia 36

Jessé Andarilho

 

Mais uma semana daquelas: históricas, polêmicas e marcantes. Ainda acho que estamos bem pertinho do fim do mundo. Para umas pessoas o mundo já acabou, para outras o mundo tá acabando e, para algumas outras, nada mudou e vida que segue.

Não gosto de generalizar as pessoas pela classe social. Quando as pessoas me perguntam como a favela está se comportando nesse momento, respondo com a mesma pergunta com relação ao asfalto.

Não tem como dizer que todos os favelados são iguais, da mesma maneira que nem todo homem branco rico é safado e nem todos os policiais são corruptos.

Esse discurso me preocupa um pouco, sobretudo nesse momento polarizado em que se você não reproduz o discurso de um lado, você está obrigatoriamente do outro lado.

Eu não sou bolsominion, mas também não sou petista. Apenas tenho minhas convicções. Falei na semana passada sobre não curtir bater panela, assim como não vou achar o Sergio Moro legalzão agora só porque ele pulou fora de um barco que ele entrou sozinho e compactuou com tudo de errado que existe naquela navegação para o Triângulo das Bermudas.

Tô recebendo algumas fotos de pessoas aglomeradas em bailes nas favelas, assim como sabemos das festinhas das blogueirinhas. Tem gente vacilando em todos os lugares, generalizar é um pouco complicado.

Não falei aqui antes, mas há três semanas perdemos o seu Helton, meu sogro. Ele vinha lutando bravamente contra um câncer fazia três anos, mas infelizmente faleceu. Nossa quarentena era toda planejada para cuidar dele, levar para as sessões de radioterapia e tudo mais.

Ficou um sentimento de perda muito grande, ao mesmo tempo que também ficou um certo conforto de saber que pelo menos conseguimos fazer um enterro ainda digno, com velório e orações. Sabemos que muita gente que morreu depois dele teve enterro sem velório e caixão fechado por determinação das instituições da saúde.

Depois do falecimento do meu sogro, ficou quase impossível evitar as aglomerações. As pessoas começaram a nos visitar, querendo abraçar, nos confortar, porque meu sogro era muito querido.

A solução que a gente encontrou foi receber as pessoas no portão com máscaras, luvas e roupas com manga comprida, para ver se pelo menos inibia e alertava as pessoas para ter cuidado. Mas, mesmo assim, algumas conseguiram furar todo esse bloqueio e os abraços foram inevitáveis.

Comecei falando de uma coisa e acabei falando de outra. A vida é assim, nem tudo sai como a gente planeja. Tem coisas que a gente não pode controlar, mas vamos seguindo com nossos propósitos e objetivos sem fraquejar.

Eu que vinha metendo pau em quem estava aglomerado, recebendo visitas e coisa e tal. Eu que era quase o fiscal do condomínio gritando com as crianças e com os velhos no play, precisei entender que o amor e o carinho dos amigos num momento de perda são essenciais para seguirmos em frente. Continuamos em isolamento social, cuidando dos que ficaram e tentando mostrar que, neste momento, estar longe é a maior e melhor atitude de quem ama.

***

Jessé Andarilho nasceu em 1981 e foi criado na favela de Antares, no Rio de Janeiro. Filho de vendedores ambulantes, trabalhou com diversas atividades na sua comunidade, até ler seu primeiro livro, aos 24 anos. Foi quando, no trajeto de aproximadamente três horas que fazia de trem de sua casa até o trabalho, passou a usar o bloco de notas do celular para contar histórias. Dessas anotações surgiu o romance Fiel, publicado pela Objetiva em 2014. Em 2015, foi convidado para integrar o grupo de redatores da novela Malhação, da TV Globo. Foi diretor de reportagem do programa Aglomerado, da TV Brasil, e produtor da Cufa – Central Única das Favelas. Fundou o C.R.I.A., Centro Revolucionário de Inovação e Arte, e o Marginow, com a proposta de dar visibilidade aos artistas da periferia. Em 2019, publicou, pela Alfaguara, seu segundo romance, Efetivo variável. Atualmente, Jessé Andarilho realiza palestras em todo o Brasil, contando um pouco da sua história e mostrando como sua vida foi transformada pela literatura.

 

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