Diários do isolamento #37: Elvira Lobato

28/04/2020

Diários do isolamento

Dia 37: Plano de fuga

Elvira Lobato

 

Ao final da sexta semana de confinamento, o desespero bateu à minha porta. Começo a arquitetar um plano para escapar de minha clausura, mesmo que seja por pouco tempo. Tenho a sensação de ter atingido o pico da curva de ansiedade, e preciso, com urgência, respirar ar livre e ver paisagens novas. Até ontem, estava convencida de que o melhor a fazer era permanecer quieta em casa. Hoje acordei com o vento virado, como se diz em Minas Gerais.

É curioso como o isolamento impacta de formas diferentes as pessoas. Meu marido continua defensor do recolhimento absoluto e irrestrito, e parece em paz com esta situação. Ele tem se submetido à clausura sem demonstrar conflito ou fraqueza, ao passo que eu estou indócil. Digo que pegou gosto pela quarentena. Ele aceita a provocação sem contestar, certamente para não dar mais munição à minha tagarelice.

Meu plano de fuga está alicerçado em conhecimentos médicos e filosóficos. O respaldo médico veio de uma grande amiga, especializada em saúde pública. Moradora do Rio de Janeiro, ela não abre mão das caminhadas matinais. Liguei para ela em busca de munição científica, e recebi em resposta a seguinte mensagem no celular: “O contrário de aglomeração não é sofá. O contrário de aglomeração é não aglomeração.”

Minha amiga passa 23 horas por dia confinada em casa, mas reserva uma hora para caminhar, ir ao banco e fazer pequenas compras. Só sai de casa com máscara e na volta cumpre o ritual de desinfecção de sacolas, sapatos, maçanetas e porta do elevador.  Ela e o marido, ambos com mais de sessenta anos, deixam a toca ao amanhecer e já comprovaram que cruzam com no máximo dez pessoas a cada circuito de 1,5 quilômetro. Estão confiantes de que não correm riscos. “So far, so good” (até aqui, tudo bem), diz ela.

Como um prisioneiro que arquiteta seu plano secreto de fuga, traço um mapa imaginário da minha escapada. Irei ao encontro de meu filho, minha nora e dos netos mais novos, que estão em quarentena no litoral norte do estado do Rio de Janeiro, numa casa da família dela. Não vejo meus descendentes há um mês e meio, e acho que já mereço uma recompensa por bom comportamento. Como diz uma outra amiga, meus netos viraram “internetos”, pois só me comunico com eles por meio virtual.

Para diminuir os riscos de contaminação na viagem, planejo pagar adiantado o pedágio para não ter de parar o carro na rodovia. Na antevéspera da partida, encomendarei bastante comida ao supermercado, aproveitando a recém-criada prioridade de entrega para os idosos. Levarei, é claro, um bom estoque de álcool em gel, mas já me advertiram que há carros pegando fogo por explosão de álcool em gel. Preciso checar se a informação é fake. Recebi imagens de um carro em chamas, e o áudio do depoimento da suposta motorista dizendo que havia esquecido a garrafa de álcool dentro do veículo, estacionado ao sol. Meu plano não pode ter furos, para garantir meu direito de retorno para casa. Meu marido nem pensa em me acompanhar e estabeleceu rígidas regras de segurança para admitir meu reingresso na gaiola.

Esclareço que o coronavírus não é o único culpado por meu estado de ansiedade. O nível de estresse disparou em razão da crise política provocada pelo presidente Bolsonaro. A demissão de dois ministros importantes durante a pandemia esgarçou a confiança que me restava. A sensação é de que estou aprisionada na beira do abismo. Medo é uma das palavras que mais ouço nos últimos dias. Medo do desemprego generalizado da população economicamente ativa; de que os pobres sejam infectados em massa pelo coronavírus e não tenham chance de atendimento nos hospitais públicos, medo do emburrecimento e do retrocesso político da nação.

Como eu disse ainda há pouco, o confinamento impacta as pessoas de modos inusitados. É impressionante como continua a enxurrada de vídeos nas redes de WhatsApp com piadas sobre o coronavírus. O que nos leva a rir de algo tão grave? Será uma forma de disfarçar o medo? Essa reação me lembra um quase desastre de avião que vivenciei, no começo dos anos 1990. O avião saiu de Teresina, às 5h da manhã, com destino ao Rio de Janeiro. Pouco depois da decolagem o piloto comunicou aos passageiros que iria esvaziar o tanque de combustível e retornar a Teresina.

A situação se mostrava tão feia que o consumo de bebida foi liberado (naquela época, as companhias serviam bebida alcoólica nos voos nacionais). Em poucos minutos ficamos todos bêbados, com exceção de umas crianças e de uma freira que rezava em voz alta. No meio da confusão, um passageiro gritou: “Adeus Ricardão, cuide bem da patroa”. Foi uma gargalhada geral. Pensei com meus botões: “Então é assim que se morre em desastre de avião?”. Sinto-me na iminência de um desastre, com o agravante de que não posso me anestesiar com a bebida. Estou sem beber há sete anos, cumprindo promessa.

Apesar da tristeza com o país, tive uma semana muito produtiva. Costurei 225 máscaras de tecido — metade de tamanho infantil — que foram distribuídas às famílias carentes da Baixada Fluminense no domingo. Mais uma vez, uma amiga apanhou produção na porta do meu edifício e a entregou a uma liderança comunitária em Nova Iguaçu. Horas depois, recebi fotos de grupos de crianças com os rostinhos cobertos com o produto do meu trabalho. As imagens reacenderam meu otimismo no futuro e me devolveram o ânimo para continuar o trabalho de formiguinha. Sentada diante da máquina de costura, observo minha coleção de casas de passarinho. Quisera ser um deles neste instante.

 

***

Elvira Lobato é jornalista e trabalhou na Folha de S.Paulo por 27 anos. Venceu alguns dos principais prêmios de jornalismo no Brasil, com destaque para o Prêmio Esso em 2008 pela reportagem sobre o crescimento do patrimônio da Igreja Universal. Antes da Folha, trabalhou para o Diário de NotíciasGazeta de NotíciasÚltima Hora, e foi colaboradora do Jornal do Brasil e do Opinião. Elvira é autora de Instinto de repórter, publicado em 2005. Em 2016, foi homenageada pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) pelo conjunto de seu trabalho jornalístico. Em 2017, publicou Antenas da floresta: a saga das tvs da Amazônia pela editora Objetiva.

 

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