Diários do isolamento #40: Eliana Sousa Silva

01/05/2020

Diários do isolamento

Dia 40: A poesia, a arte e o pêndulo da morte e da vida: que escolha faremos?

Eliana Sousa Silva

 

Quando a tristeza me domina vou atrás de uma poesia para ler. Penso que é um modo de alimentar meu ser, mas também de reconhecer o quão tangível é a vida, podendo ser sentida a partir de muitos prismas. Morte e vida, e o que temos em torno disso, são pensamentos mais fortes, mais vertiginosos, que aparecem e povoam o meu cotidiano.

Leio versos de Vinicius de Moraes e passeio com certo vagar por sua poética: “De manhã escureço/ De dia tardo/ De tarde anoiteço/ De noite ardo/ A oeste a morte/ Contra quem vivo/ Do sul cativo/ O este é meu norte/ Outros que contem/ Passo por passo: Eu morro ontem/ Nasço amanhã/ Ando onde há espaço: — Meu tempo é quando.”

Nesses versos passam imagens das pessoas que morrem cada dia mais...

Olho o endurecimento do processo de contaminação da população pelo coronavírus no Brasil e vejo, como num movimento pendular, que chegaremos a um extremo ou outro — morte e vida — dependendo das escolhas que fazemos como sociedade. O que vinha se anunciando há quase dois meses sobre o esgotamento da capacidade dos hospitais em relação à demanda das pessoas contaminadas já é uma realidade em muitos estados no país. No Rio de Janeiro estamos vivendo uma catástrofe.  

A doença avança a passos largos e a resposta dos governos continua aquém do que deveria ser. Pior é reconhecer que isso não tem a ver apenas com incompetência. Faz, sim, parte da lógica e dos pressupostos que regem a política brasileira vigente.

A pandemia do vírus Covid-19 exibe de forma clara a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) e dos profissionais da área nas mais diferentes camadas de atenção à saúde pública. A falta de uma política de fortalecimento desse modelo, antes mesmo da crise atual, tem como consequência a completa exaustão de algo que poderia ser um aliado efetivo neste momento.

Temos vivido um contexto muito dramático nas favelas da Maré. Se por um lado há uma dificuldade real e prática de diminuir as aglomerações nas ruas — e alterar a rotina de determinadas atividades sociais que reúnem muitas pessoas, como comemoração de aniversários e churrascos ao ar livre —, por outro vemos claramente a doença se alastrar, com um número cada vez maior de moradores que procuram ajuda.

A situação é angustiante porque quando estou ali imersa, tentando elaborar formas de contribuir para que não tenhamos uma situação sem controle na região, penso no descaso histórico com essa população, na negligência com os profissionais da área de saúde que trabalham nas Unidades Básicas de Saúde. Bate um sentimento de irritação e penso na responsabilidade que todos temos quando não conseguimos reagir — naturalizando ou mesmo nos omitindo — diante de fatos muito graves que tem relação direta com as violências dirigidas a determinados segmentos da população.

No contexto da campanha “Maré Diz Não ao Coronavírus”, criamos uma iniciativa chamada “De Olho no Corona”. É um canal direto com os moradores, através de um número de WhatsApp. Temos recebido muitas e distintas demandas surgidas nesse momento de crise:  perda de renda,  ajuda com cestas de alimentos, remédios, material de limpeza, entre outras.

Mas, além destes pedidos, recebemos também solicitações sobre como acessar serviços de saúde, leitos para pessoas com Covid-19, relatos de violência contra mulheres — e até mesmo um comunicado sobre um rapaz encontrado pela polícia tentando se suicidar, ele queria pular de um viaduto no centro da cidade e disse morar na Maré.

São tantas situações urgentes que fico me perguntando: Que esforços mais podemos mobilizar? Que direção seguir? Que esquinas fazer ecoar o grito que poderia abrandar tanto desespero e pedidos de socorro?

No meio desses pensamentos algo me traz uma leveza: meu pai, que tem 85 anos, e está em quarentena com a minha irmã em Friburgo. Falo com ele pelo menos duas vezes por semana. Ele está bem, e até descobriu a possibilidade de pintar telas. Meu cunhado — que é artista plástico — o acompanha na iniciação das artes. Meu pai fez uma tela grande linda e minha irmã colocou à venda na internet a pedido dele. O objetivo? Doar o dinheiro para compra de alimentos para a nossa campanha na Maré. Esse gesto alegrou muito a minha semana. Ver meu pai lúcido, produtivo, interagindo com as demandas do momento e querendo fazer parte disso é, de algum modo, mesmo que numa escala tão pequena, um alento e tanto.

Volto de novo meu olhar e meus pensamentos para os números da pandemia no Rio de Janeiro e nas favelas da Maré:

Oficialmente, até 29 de abril, foram confirmados 5.554 casos de coronavírus, com 3.067 recuperados e 456 óbitos na cidade. Já no conjunto de favelas da Maré, até essa data, foram identificados 13 casos, com 4 mortes confirmadas.

No entanto, um levantamento feito pela equipe social da Redes da Maré, a partir das demandas que nos chegam, aponta que num universo de 63 pessoas contatadas: 38 estavam com suspeita de Covid-19, 13 tinham diagnóstico confirmado e 12 haviam falecido em decorrência do vírus. Esses números mostram claramente a subnotificação em relação às mortes por Covid-19. Mais uma vez, estamos diante da falta de seriedade e cuidado com as vidas que são perdidas. Vidas que, para muitos, pouco importam.

 

***

Eliana Sousa Silva nasceu em Serra Branca (PB) e morou na Maré durante 25 anos. É autora do livro Testemunhos da Maré (Aeroplano, 2012) e fundadora da Associação Redes de Desenvolvimento da Maré, da qual é diretora.

A Redes da Maré promove mais de vinte projetos de desenvolvimento local, arte, cultura e educação nos territórios da Maré, com destaque para o Curso Pré-Vestibular Comunitário da Maré, o Programa Criança Petrobras na Maré e o movimento “A Maré que Queremos”, com mobilização social e fórum permanente para debater a melhoria da qualidade de vida nas comunidades da região.

Recebeu diversos prêmios, entre os quais o Empreendedores Sociais, da Ashoka (2000). Atualmente é também consultora do Canal Futura e da Associação Cidade Escola Aprendiz, de São Paulo, e está escrevendo um livro sobre a criação da Redes da Maré, que será publicado pela Zahar.

 

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