Diários do isolamento #47: Alejandro Chacoff

08/05/2020

Diários do isolamento

Dia 47

Alejandro Chacoff

 

Dias instáveis, muitas brigas e gritaria. Enquanto grito, enquanto vocifero e acuso, me dou conta já no próprio ato de que o rompante é inautêntico. Algumas horas depois já estamos bem, abraçados no sofá ou trabalhando juntos no escritório. Essas brigas homéricas têm um quê de thriller barato. Há muita ação nelas, muitas frases categóricas, algumas elipses mão-pesada (“você sabe do que estou falando”), mas no fim sobra pouca coisa — não há grandes epifanias, e é difícil sequer lembrar do que se tratava a obra. Uma imersão total e fútil. Estaria mais preocupado se estivéssemos incorporando outro gênero literário. Se houvesse mais silêncios e mais ruminação, por exemplo, estaria mais preocupado.

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Para gente de fora, porém, a gritaria deve assustar. Outro dia, em meio a um momento colérico, um menininho da sacada em frente gritou: “Parem de brigar!” Por dois dias tínhamos ouvido a mãe desse mesmo menino cantando óperas profanas às três da manhã. “Vai tomá no cu, vai tomá no cu, vagabunda, filha da puta”, ela cantarolava, por horas a fio. Na manhã após a primeira madrugada de cantoria, ainda sob esse fluxo de consciência, a mulher fitara J. pela sacada e ameaçara, num tom brincalhão, cortar a nossa cadelinha Dachshund em pedaços. Ano passado, durante um colapso nervoso parecido, tínhamos visto a ambulância na calçada. Dessa vez, acho que a sedaram. Talvez não quisessem romper a quarentena.

Agora da mesma sacada o menininho pedia para que parássemos de brigar. Não sei se ele estava sendo insolente, ou se precisara tomar coragem para fazer o pedido, mas J. foi à janela e lhe respondeu de bate pronto: “Tô na minha casa e brigo na hora que eu quiser!” O menino zarpou para dentro do apartamento. Depois nos sentimos culpados, mas não muito. Só sei o nome do menino porque uma tarde ouvi a sua mãe (a mesma da ópera profana) chamando-lhe para ver as videocassetadas do Faustão. “Vem ver, vem ver, videocassetadas!”, ela gritara, rindo. O gesto me pareceu deprimente e ao mesmo tempo terno, remetendo-me sentimentalmente à minha própria infância.

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Talvez as brigas sirvam, sub-repticiamente, para dar um simulacro de movimento aos dias. Os sonhos também parecem cumprir essa função, suprindo a ausência de movimento do mundo tangível. Sempre tive sonhos vívidos, agitados, mas os das últimas semanas têm sido particularmente intensos.

Num deles, eu chego no portão de um casarão. No gramado da entrada da casa, há vinte ou trinta pessoas, uma família e seus agregados. Não estão me esperando; me fitam com desconfiança. Por alguma razão quero muito me juntar a eles. Amigos tinham me aconselhado a não aparecer por lá: com o meu histórico, eu nunca seria aceito, tinham me dito. Os amigos não definem exatamente o que é esse tal “histórico” a que se referem.

À frente do portão, ouço algumas acusações dos moradores. Não acreditam na minha cara de pau de aparecer por lá. Eu não respondo, só espero, e finalmente um deles permite que eu passe ao gramado. Há um burburinho hostil em minha volta, até que de repente um ancião careca e de bigodes brancos me puxa pelo ombro, colocando-me dentro da casa. Os outros, a princípio indignados com a benevolência do velho, de repente já estão em júbilo com a minha presença, se curvando à vontade do patriarca com a mesma cara de pau da qual me acusavam antes. Subimos umas escadas longas de madeira. As estantes da casa estão repletas de neve, e nelas há também globos de vidro com cidadezinhas minúsculas sob as quais uma neve artificial cai incessantemente. Há também árvores que se espalham pelos cantos, se bem me lembro.  “Você já esteve em Lund antes?”, o velho me pergunta, acolhedor.

Assim que acordo no meio da noite, sem sequer acender a luz, rabisco a palavra numa das páginas do livro que está no criado mudo. Penso que na manhã seguinte procurarei o significado dela, mas não me aguento, e sob a luz azulada e nauseante do celular entro no google. Imagino que se soletre “Lundt”, não sei bem por que, já que não haveria como a voz do velho indicar esse “t” mudo. O google me devolve Ben Lundt, um goleiro alemão de que nunca ouvi falar, jogador do Louisville City Football Club — um clube obscuro do estado de Kentucky, nos Estados Unidos.

Em seguida digito “Lund”. Aparentemente é uma cidade no sudoeste da Súecia. Tem pouco mais de 90 mil habitantes e fica na província da Escânia, a alguns poucos quilômetros de Malmo. Em outros tempos, teria buscado mais informações sobre a cidadezinha, guardado o nome para uma visita curiosa. Mas as fronteiras estão fechadas.

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O livro no criado mudo era Morro dos ventos uivantes. Finalmente comecei a lê-lo pela primeira vez. Uma confusão ali no início — vários personagens de nomes parecidos, todos meio aparentados entre si, parecia uma família mato-grossense. Aliás, de onde vem a famosa reserva inglesa? Certamente não desse livro. Estou na página 102 da versão da Penguin e Catherine já deu uns beliscões na Nelly, além de lascar um tapão na orelha de seu futuro marido Edgar Linton. Não é só Heathcliff que é grosso. Há algumas cenas verdadeiramente cômicas, quase inacreditáveis de tão passionalmente explícitas. Com o marido no mesmo recinto, Catherine se derrete quando reencontra Heathcliff, e depois fica indignada quando Edgar demonstra a mínima insatisfação com o seu júbilo. A escolha de Nelly, a governanta, como narradora de boa parte do livro, é uma grande tática. Nelly calibra a nossa simpatia por Catherine e Heathcliff; as suas pequenas doses de ceticismo evitam transformá-los em herói e heroína tout court — eles não são Elizabeth Bennet e o Senhor Darcy, por exemplo, casal para o qual o leitor torce. Há algo menos manipulador na forma em que Brontë apresenta seus personagens. Guiado por Nelly, o leitor se dá conta de que Catherine é de fato mimada, e Heathcliff é de fato chucro, grosso, não apenas elegantemente taciturno como Darcy. Talvez o desenrolar da história me contradiga, mas gosto muito desses defeitos.

Quando Heathcliff some pela primeira vez, Catherine sai para procurá-lo em meio a uma tormenta forte, e na volta ela adoece. Se recupera logo em seguida, mas desde as primeiras páginas do livro sabemos que esse tipo de gesto impulsivo não ficará barato mais para a frente. Doença à espreita, tormentas premonitórias, as cenas que quase sempre ocorrem dentro de um casarão: inevitavelmente, o solvente do presente colore a minha leitura. Sonhei com uma casa que era na verdade uma cidade, como se atravessar um portão fosse o mesmo que atravessar uma fronteira.  

 

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Alejandro Chacoff nasceu em Cuiabá, em 1983, e mudou-se para os Estados Unidos aos dois anos de idade. Viveu no Chile, Inglaterra e Argentina, antes de voltar para radicar-se no Rio de Janeiro, onde desde 2016 trabalha como crítico de literatura e ensaísta da revista piauí. É também colaborador de publicações como The New Yorker, n+1, The Guardian e The Atlantic. Apátridas, publicado pela Companhia das Letras, é o seu primeiro romance.

 

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