Diários do isolamento #52: Jarid Arraes

13/05/2020

Diários do isolamento

Dia 52

Jarid Arraes

 

Não tenho mais qualquer plano para o futuro. Não consigo imaginar como será a vida daqui a cinco anos, daqui a um ano, daqui a dois meses. Hoje não consigo imaginar que as compras de mercado chegarão daqui a dois dias, pode ser que não cheguem. Não consigo imaginar o próximo episódio da minha série favorita, pode ser que eu não o veja. Hoje o futuro aparece para mim como as folhas finais de um caderno. Pode ser que eu nunca escreva sequer uma frase naquelas linhas.

Ontem eu assistia temporadas antigas de RuPaul’s Drag Race e comentei com meu namorado que estava animada pela final da temporada atual. Ele falou, mas como eles vão fazer a final, se não podem gravar? E por alguns segundos eu fiquei solta no tempo, como assim não podem gravar? É que a final sempre é feita num teatro, com assentos lotados de fãs, de gente famosa, gente que precisa daquele momento para sentir que é parte de uma coletividade. E quando meu cérebro finalmente encontrou o caminho do raciocínio, então eu perdi mais uma visão de futuro. Um futuro tão próximo, talvez uma semana distante.

Mas não há futuro para a semana que vem.

Abri um vinho especial daqueles que ainda fico guardando para um dia especial. Tenho alguns vinhos desse tipo e nunca me passou pela cabeça que eu poderia beber uma garrafa inteira enquanto vivo algo sem rótulo de grande momento. O primeiro desses vinhos, bebi enquanto participava de uma live em que conversei sobre literatura e Lady Gaga. Poderia argumentar que essa foi uma live muito especial para mim, porque foi, mas o vinho não era para esse presente. E aí refleti sobre todas as garrafas que esperam e que estavam certas de seus futuros.

Sinto muito, garrafas, não há futuro para o vinho.

No dia das mães, conversei com a minha por quase uma hora. Meu braço já formigava quando desliguei o celular. Pedi, mainha, me manda áudio todo dia? Me conta sobre as coisas mais bestas que estão acontecendo? Vive comigo no presente? Porque não há futuro para as mães.

Foi assim que entendi por que agora assisto filmes sobre o fim da vida e o fim do mundo. Entendi por que uso alguns jogos para liberar violência. São as estratégias do meu cérebro para lidar com a angústia e o medo. Talvez se eu empalar e rachar crânios de personagens do Mortal Kombat 11, o medo da violência futura fique aprisionado no Switch. Talvez se eu assistir as cenas mais assustadoras, o medo do terror futuro seja guardado nos meus sustos ridículos. Então aperto x, y, dois para cima, R1, L1, faço a Sindel arrancar os fatos do Sub-Zero, rio alto e digo, mas eles botaram pra lascar mesmo nesses sons realistas, né?, e o medo bate, bate, bate, mas não em mim.

Estou tomada por um sentimento que não sei nomear. Não é um sentimento contido no espaço de uma palavra. Não enxergar qualquer futuro é como fechar as janelas e portas de casa, encher a sala de gás leitoso. E dançar. A música está alta, eu não consigo escutar o mundo lá fora. O gás não alcança meus pulmões, mas tudo é nébula. Opacidade corneana. A hora de dançar é agora.

Cansei de listar as coisas horríveis que acontecem no Brasil. O presidente e o churrasco e o jet ski, o país que não entrou no acordo de pesquisa da vacina contra o coronavírus, o escritor amado que não suportou o vírus e morreu, a coluna do Luiz Schwarcz virando obituário. As pessoas brigam pela internet, brigam pelas varandas, brigam dentro de casa, brigam dentro de si mesmas. Esse tipo de briga não vai garantir o futuro. A lista de notícias revoltantes não será mais minha forma de pensar no futuro. Não penso no futuro porque talvez ele seja o fim de qualquer presente.

Por aqui, o elevador continua em reforma, as ruas insistem barulhentas, cheias de carros e pessoas, uma construção de prédio ainda faz ecoar o concreto sendo destruído, meus gatos miam demais e meu cachorro bate nas portas de vidro da varanda pedindo para sair. Muitas vezes ele só quer que a varanda seja aberta. Aí ele sente o vento, aí ele fica em pé no parapeito e observa o movimento, aí ele deita no chão frio. Meu cachorro é a pessoa que tem a experiência mais intensa do agora e ele não pode transformar sua tristeza em poesia. Penso por ele, penso que ele olha para as ruas cheias como quem lamenta sua prisão. Não vai correr tão cedo.

Não existe futuro para o parque.

Eu tentei começar um romance. Preenchi quase cem páginas, mas quando expliquei em voz alta o que tinha escrito, percebi que daquele jeito não funcionaria. Vou ter que começar de novo, quem sabe por outra perspectiva. Aquela estrutura que construí na imaginação, por meses, vai desabar. Tudo bem que ela vire pó, faz parte, mas. Se começo a escrever, escrevo por necessitar do movimento interno que a escrita encoraja. Não imagino quando será publicado, quando faria o lançamento e que tipo de brinde daria aos leitores nos eventos. Eu sempre planejei o futuro dos meus livros, com esse futuro eu sempre fui adiantada. Mas.

Não existe futuro para o romance.

Ontem abrimos nossa porta no mesmo instante em que a vizinha também abriu sua porta. Ela estava com a filha, as duas usavam máscaras de pano. Quando nos viram esperando o mercado que subia pelo elevador, voltaram rápido para dentro. Falei alto, elas saem toda hora e é da gente que sentem medo? Pode ser que tenham escutado, eu quis que ouvissem. Os vizinhos saem todos os dias e várias vezes ao dia, mesmo quando não é hora de trabalho. Quem sabe essa tenha sido uma das poucas ações de total responsabilidade, essa que bateu a porta diante da máscara azul. Mas eu senti raiva. Sinto muito, vizinhos, eu estou em total isolamento desde o dia onze de março. Sinto muita raiva de quem sai.

Agora, enquanto procurava a lista de temas que anotei para não esquecer de escrever nesse diário, encontrei minha lista de metas para 2020. Das dez metas, seis podem ser completamente cumpridas dentro do isolamento; duas podem ser cumpridas pela metade, outra não pode ser alcançada entre as paredes do apartamento, mas uma já foi feita. Eu não olhava mais minha lista de metas, pensava ser inútil. Mas agora que percebi que quase todas são realizáveis, senti vontade de chorar. Quando as coisas só dependem de mim, fica difícil montar uma cadeia de desculpas. E eu uso desculpas o tempo inteiro. Passo o dia jogando e justificando que não faço mais nada porque não tenho cabeça para outra coisa. Não leio outro livro porque digo que não encontro oportunidade entre meus sentimentos. Mas a verdade é simples. Por ser simples, vira angústia. Só depende de mim. É uma escolha que faço. Não fazer também é escolher.

E pode ser que não exista escolha de futuro.

Senti vontade de chorar. Mas não chorei. Não chorei nenhuma vez por causa do coronavírus.

Hoje vou entregar todos os textos que preciso e abrir uma das garrafas caras de vinho. Não vou esperar para presentear alguém importante. Não vou guardar para beber depois do lançamento do meu próximo livro. Não será uma garrafa que viverá para o futuro. Ela não consegue viver amanhã. Não consigo. Não consigo sentir ano que vem, mês que vem, semana que vem, daqui a dois dias. Não sinto o futuro.

Um brinde ao que pode não ser.

 

***

Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nomeAs lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.

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