Diários do isolamento #54: Alejandro Chacoff

15/05/2020

Diários do isolamento

Dia 54

Alejandro Chacoff

 

A minha impressão é de que o prédio se esvaziou; não ouço vozes nas poucas vezes em que passo caminhando pelo corredor. Na segunda-feira não houve coleta, e desci à garagem para levar o lixo. Depois fiquei em pé na parte descoberta do pátio, recebendo o sol no rosto por um tempo, em meio a uma brisa prazerosa. Volta e meia ela balançava os galhos das amendoeiras e mangueiras ao redor, de modo que o efeito, de olhos fechados, era o de um pisca-pisca. Perdi a conta de quanto tempo fiquei ali, ouvindo a minha própria respiração através da máscara (não sei porque não a tirei). Senti como se estivesse me saciando; como se estivesse comendo, enchendo a barriga.

J me explicou há alguns anos que, quanto mais perto da linha do Equador, mais vertical é a luz do sol. Por causa da inclinação ou algo assim, nos trópicos a luz cai de forma mais direta, mais brutal. Desde a infância, eu me sentira culpado por preferir a luz fria do Hemisfério Norte a esse sol chapado do Sul. Expor-me ao sol forte é mais ou menos como expor-me, no geral: descasco rapidamente, minha inadequação fica patente, mostro que não possuo a resistência cutânea do lado de minha mãe. É absurdo que eu tenha demorado tanto tempo para realmente sentir esse prazer do sol sobre a pele.

Quando subi de novo, estava preparado para explicar a J porque eu tinha demorado tanto lá embaixo, mas ela não perguntou. Comecei então a tentar explicar-lhe mesmo assim. Tentei discorrer sobre a sensação física de ficar ali em pé, embaixo do sol, de máscara. Não consegui me articular muito bem. “Porque você não coloca isso no diário?”, ela sugeriu. “Não sei se é o caso”, lhe respondi de bate pronto, quase ríspido, em parte por ser tão óbvio que era justamente isso que eu iria fazer.

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“Mas hoje descobri que talvez não me barbeie porque não lembro de algum dia ter tido a barba tão comprida, ou pelo menos tão branca, e pensei que gostaria que, antes de fazer a barba, tirassem uma foto minha com ela.” Concordo em parte com o que Levrero escreve em seu diário. A diferença é que não quero manter a barba para mostrar a cara numa foto, mas sim para escondê-la, fazê-la desaparecer sob a pelagem que cresce a cada noite. Qual será o efeito de vivermos assim daqui para a frente, escondendo o rosto com máscaras? É possível que as expressões faciais dependam mais dos olhos, e o subterfúgio, paradoxalmente, se torne até mais difícil: não é fácil mentir só com os olhos. Se não tenho a resistência cutânea da família de minha mãe, tenho pelo menos essa barba que o meu pai teria, se algum dia ele tivesse decidido usar barba – uma barba densa, cheia, sem falhas, ideal. Gosto dela. Sua cor preta pinçelada por um ou outro pêlo branco é nostálgica. Me lembra a cor do meu cabelo antes de ele ficar grisalho, como era há mais ou menos onze ou doze anos, circa 2009, um tempo que quando o vivi me pareceu extraordinário, e que agora vejo que realmente foi. 

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O diário tinha uma capa coberta com desenhos de flores, e um cadeado pesado, de um dourado brilhante – proteção exagerada que parecia exigir de quem fosse escrever ali os segredos mais escabrosos. Tinha sido um presente de minha mãe. Quando um amigo o viu na mesa do meu quarto, tentou caçoar da capa afeminada, mas foi prontamente repelido por um outro amigo ligeiramente mais velho. “Admiro para caramba”, esse amigo mais velho disse, sem dar muita ideia do quê ou quem devia ser admirado. Mas ele era uma espécie de autoridade no grupo, e nunca mais se falou no tal diário.

Foi bom que tenha sido assim, pois eu não sabia o que fazer com ele. Tudo que escrevia ali soava banal. Me entediava com a enumeração dos eventos do dia — tomei café, fui à aula, assisti TV. Em pouco tempo, desisti de anotar qualquer coisa e o diário ficou jogado num canto. Depois o perdi. Um tempo antes, eu ganhara outro presente de minha mãe: um livro best-seller, O diário de Zlata, a menina que relatara o seu cotidiano na guerra da Bósnia. Não tive coragem de dizer à minha mãe que não terminei o livro. A falta de coragem para fazer essa confissão se ligava de alguma forma à gravidade da guerra — como eu poderia ser tão displicente com um tema assim, eu pensava, como ousara não terminar aquele livro? Essa gravidade também era o que parecia justificar o diário dela, e de alguma forma impossibilitar o meu. Como se a catástrofe fosse condição necessária para relatar o cotidiano, para enchê-lo de significado.

Talvez a demanda pelos diários da pandemia surja dessa premissa, mas é difícil manter o ar catastrófico o tempo inteiro. O terror surge em pequenos momentos, e o instinto humano de reprimi-lo, de adaptar-se a qualquer custo, é forte. Zlata assistia MTV: isso é das poucas coisas que lembro das páginas que li. Sinto que em pouco tempo colocarei essas máscaras sem autoconsciência, e o odor do álcool gel será como o do arroz do almoço; em pouco tempo, esse diário de isolamento se tornará diário, e só. Talvez isso não seja tão ruim. No fim somos mais verdadeiros sobre catástrofes quando achamos que não estamos falando delas.

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Alejandro Chacoff nasceu em Cuiabá, em 1983, e mudou-se para os Estados Unidos aos dois anos de idade. Viveu no Chile, Inglaterra e Argentina, antes de voltar para radicar-se no Rio de Janeiro, onde desde 2016 trabalha como crítico de literatura e ensaísta da revista piauí. É também colaborador de publicações como The New Yorker, n+1, The Guardian e The Atlantic. Apátridas, publicado pela Companhia das Letras, é o seu primeiro romance.

 

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