#juntos

12/06/2020

Por Karla Monteiro*

SW contesta a Tribuna da Imprensa durante seu depoimento à CPI da Última Hora, em julho de 1953. Sentado, à direita, o deputado Armando Falcão, do PSD, aliado de Carlos Lacerda e futuro ministro da Justiça do governo Geisel. (Crédito: Arquivo Família Wainer)

Na primaveril manhã de 29 de setembro de 1967, o Jornal do Brasil publicou uma magoada carta de Samuel Wainer, enviada de Paris, onde o jornalista, fundador da Ultima Hora, estava exilado havia longos três anos. “Meu caro Jango”, ele iniciara a missiva. Por aqueles dias, uma fotografia de João Goulart, o escorraçado, sorrindo ao lado do algoz Carlos Lacerda, havia estampado as páginas dos principais jornais brasileiros, acompanhada de uma declaração conjunta. Dali em diante, estariam juntos na campanha pela redemocratização do país. “Hoje apertando sua mão no exílio em Montevidéu, amanhã apontando você como inimigo da Pátria, Deus e a Família”, alertou Samuel. Na lista de conselheiros do ex-presidente, ele ocupara privilegiada posição. O evil genius, segundo o Departamento de Estado dos Estados Unidos, sempre ao lado de João Goulart nas horas de decisão – e aflição. Relação que recuava, aliás, à “longa jornada, iniciada nos românticos dias do sítio do Itu e encerrada na interminável madrugada de 31 de março, quando, na porta do Palácio Laranjeiras, despedimo-nos a fim de partir para este imprevisível exílio”.

“Receba, assim, Jango, esta minha discordância como uma atitude estritamente pessoal, imposta por um dever de amizade e respeito, que nunca deixarei de sentir por você”.

Qual era o custo de uma Frente Ampla? Havia limite? Carlos Lacerda era o limite da esquerda? E, Jango, o limite da direita? Quase dois anos tinham se passado desde que fora lançada a semente da união. Nos primeiros meses de 1965, num almoço em Paris, um amigo comum de Lacerda e Juscelino Kubitscheck, Joaquim da Silveira, havia soprado no ouvido do humilhado mineiro, cassado e enfrentando uma barafunda de IPMs – Inquéritos Policiais Militares –, a máxima utopia: juntos. Agora, no promissor 1967, três anos depois da grande ruptura, que abrira caminho para a grotesca ditadura, o país respirava fumaças de abertura. Com a imprensa – quase – livre, o bonachão Arthur Costa e Silva dava a entender que estava preocupado com a “transição revolucionária”. Bem ou mal, existia uma nova Constituição, parida pelo AI-4, com o intuito de conferir aparente legalidade ao regime. Nas palavras de Millôr Fernandes, o Brasil corria o risco de cair numa democracia.

A costura até ali fora complicada, morosa, com inúmeros percalços. Na primeira hora, Carlos Lacerda se fez de difícil, rechaçando as piscadelas de Juscelino. O primeiro havia feito o diabo para impedir a posse do segundo, em 1956, alegando que a eleição da chapa JK-Jango nada mais era do que a “volta dos Gregórios”, em referência a Gregório Fortunato, guarda-costas de Getúlio Vargas. Ligado à banda “entreguista” das Forças Armadas, Lacerda só não conseguira impedir a vontade das urnas graças ao contragolpe do general Lott, o empedernido legalista que botou as tropas nas ruas. Por sua vez, Juscelino, ao se mudar para o Catete, dera um jeito de calar o jornalista, com a apelidada “portaria rolha”, que, trocando em miúdos, impedia Lacerda de falar no rádio e na tv. De mais a mais, Lacerda, que só se referia ao presidente com alguma variação de ladrão, movera uma demolidora campanha contra a construção de Brasília. Diante de uma vida inteira de rusgas, os dois, enfim, se acertaram. Lacerda deu o sinal verde fazendo um doce elogio à estrada Belém-Brasília

Com Juscelino em Paris, o jornalista Hélio Fernandes, irmão de Millôr, agora dono da Tribuna da Imprensa, o jornal que Lacerda fundara em 1949, colocou em marcha o debate para a construção da Frente Ampla. Discretas, as reuniões passaram a acontecer na luxuosa mansão do industrial Alberto Lee, no Rio de Janeiro. Além de Carlos Lacerda e do filho, Sérgio Lacerda, participavam nomes como o esquerdista Ênio Silveira, editor da Civilização Brasileira, o pessedista Renato Archer, da turma de JK, e o petebista Wilson Fadul, ex-ministro de Jango. Segundo Hélio Fernandes, “a melhor e mais desprendida manifestação de espírito público coletivo que conheci”. De acordo com Sérgio Lacerda, “meu pai se portou com grandeza. Ele reconheceu o próprio sacrifício. Não se via a bravata da época da UDN. Ele foi visto como campeão da direita e foi posto de lado quando a extrema direita assumiu”.

Com os porões abarrotados de presos políticos, os líderes não pareciam ter pressa. Negociavam-se virgulas. Lacerda rechaçou a palavra “redemocratização” no manifesto em construção, porque imprimia volta ao passado. Ou seja, aos governos de JK e Jango. Preferia “democratização”. Juscelino bateu o pé, não abria mão do prefixo. A maioria rejeitou a ideia de convidar 100 personalidades para assinar o texto. Somente os quatro nomes da política nacional, que juntos somavam todo o eleitorado, deveriam chancelar a Frente Ampla: Lacerda, JK, Jango e Jânio Quadros. Ao fim, Jânio escorregou, fugindo para o Guarujá no dia marcado para a conversa definitiva com Lacerda. E João Goulart saiu pela tangente, lançando a ideia de dois manifestos, paralelos e simultâneos, o que, obviamente, era a negação do propósito primordial. Na revista Visão, Lacerda escreveu um artigo implorando pela superação dos ressentimentos. Havia três opções: engolir o choro, cadeia ou exílio.

“Um saco de gatos”, disparou O Globo, franco apoiador do regime militar. A Ultima Hora de Samuel Wainer, que, na ausência do dono, encontrava-se nas mãos de Danton Jobim, concordou com Roberto Marinho: “Balaio de caranguejos”. Renato Archer suspirou aos jornais inúmeros rascunhos do manifesto e objeções levantadas, contando que não seria exagero afirmar que cada palavra consumira uma reunião inteira.

Por seu turno, o governo começou a mexer os pauzinhos para esmorecer a vontade de Juscelino, acelerando os inquéritos contra ele que corriam soltos na justiça militar. O presidente Costa e Silva chamava a Frente Ampla de CGT político, numa referência à entidade que abrigou no governo João Goulart os principais sindicatos. No fim das contas, em 27 de outubro de 1966, Lacerda lançou o suado manifesto numa entrevista coletiva para cerca de 200 jornalistas, a maioria estrangeiros. Por enquanto, só constava sua solitária assinatura.

Aos trabalhadores, o texto reservou algumas linhas: “Expulsos da comunidade como se fossem párias e oprimidos pelo desemprego e pela perda de poder aquisitivo, expressamos a nossa disposição de realizar esta união para defender o seu direito de existir e de aspirar melhores condições de vida”.

***

“Samuel, você não tem o direito de atrapalhar as negociações com Jango”, disse-lhe JK, num áspero telefonema de Lisboa para Paris. Em 19 de novembro de 1966, um mês depois do lançamento do manifesto da Frente Ampla, no Rio de Janeiro, Juscelino recebera Lacerda para um tête-à-tête em seu novo apartamento na capital portuguesa. Do encontro, saiu o “Pacto de Lisboa”, além de um retrato dos velhos inimigos sorrindo para a posteridade. Charmoso, Lacerda chegara à casa do ex-presidente com um disco do Chico Buarque debaixo do braço, “a única alegria do Brasil desde 1964”. Na conversa, concordaram na palavra chave: paz. O Brasil precisava do espírito de Abraham Lincoln – e não de ressentimentos. Segundo contaria JK, havia verdade nos olhos de Lacerda. Agora faltava vencer a vacilante vontade de João Goulart. Samuel não se conformava: “Se tenho direito ou não, presidente, eu é que decido”.

Em Carlos Lacerda, ele era diplomado. Na juventude, foram amigos íntimos, dividindo a militância contra o Estado Novo e a redação da lendária revista Diretrizes, a primeira publicação importante que Samuel comandara. O expediente de Diretrizes reunia toda a patota antifascista: Jorge Amado, Rubem Braga, Álvaro Moreyra, Otávio Malta, Carlos Drummond de Andrade, Joel Silveira, Augusto Rodrigues, Antônio Nássara, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Moacir Werneck de Castro, Francisco de Assis Barbosa. Depois dessa romântica fase, tornaram-se inimigos de morte. Samuel, sem dúvida, devia a Lacerda boa parte de sua fama. Em 1953, ele o havia arrastado para o centro de um escândalo que abalou o governo de Getúlio Vargas. A CPI da Ultima Hora, que investigara a origem nebulosa do dinheiro que financiou o chamado império Wainer, foi o começo da crise de tão dramático desfecho: o suicídio de Getúlio. Carlos Lacerda era o “assassino do suicida”, como diria Nelson Rodrigues, nas páginas da Ultima Hora.

***

João Goulart deu de ombros. Águas passadas. Às cinco da tarde do dia 24 de setembro de 1967, quase um ano depois do “Pacto de Lisboa”, recebeu Lacerda em Montevidéu. Segundo contaria Maria Teresa Goulart, ela o encontrou perdido na portaria do prédio. Sem reconhecê-la, perguntou-lhe onde era o apartamento de João Goulart: “Eu estava de minissaia, botas até o joelho e óculos gigantes”.  Os dois subiram juntos no elevador: “Ele me olhando de lado”.  Só quando João Goulart abriu a porta se deu conta da gafe: “Desculpa, dona Maria Teresa”. Da reunião, também participaram Renato Archer e Ivo de Magalhães, ex-prefeito de Brasília. Lacerda começou a conversa dizendo que sabia das feridas, mas eram recíprocas. De acordo com Archer, o sorriso amistoso de Jango derreteu as resistências. A conversa se estendeu até meia-noite.

 “Agora estamos unidos e temos todo o povo”, disse Lacerda no dia seguinte, respondendo agressivamente aos questionamentos dos jornalistas sobre as brigas passadas. Cunhado de João Goulart e também exilado no Uruguai, Brizola discordou: “Não me surpreende que Jango se entenda com Lacerda, e o que me cabe é desejar-lhe boa sorte, em tão boa companhia. Por essa mesma falta de fidelidade aos princípios, foi perdendo sua autoridade como presidente – e acabou deposto, com inacreditável facilidade”. Assim como Samuel, não podia perdoar: “O sacrifício de Vargas e sua carta testamento não podem ser esquecidos tão facilmente. Foi Lacerda, como ponta de lança de grupos internacionais, que levou Getúlio ao desespero. Como governador da Guanabara foi liberticida, um verdugo policial, um tirano. Está na oposição simplesmente porque os militares não lhe permitiram ser o presidente da República. E também porque os seus amigos do exterior conseguiram outros melhores representantes no Brasil”.

Majoritariamente reverentes ao regime militar, os jornais brasileiros fizeram troça. Para a Folha de S. Paulo, a Frente Ampla dava a impressão de um ajuntamento de líderes sem liderados. O Diário Popular duvidava que as massas iam seguir Jango naquelas condições. O Estado de São Paulo lamentou o “inacreditável e incompreensível ato de Carlos Lacerda”. O Jornal do Brasil referiu-se ao encontro em Montevidéu como um negócio feito para acertar a compra de votos por um estancieiro milionário para um político caído. O Globo publicou uma série de editoriais, estampando na capa a foto do corpo do major Rubem Vaz, morto no famoso atentado da Toneleiros, em 1954, arquitetado pelo chefe da guarda de Getúlio. Sobre o presidente Costa e Silva, o diário de Roberto Marinho lamentou: “Não poderá fazer um governo de paz, de trabalho construtivo. Terá um verdadeiro inferno com Carlos Lacerda”.

Em Paris, Samuel soube do comentário de Jango ao ler a sua ressentida carta, que repercutiu na maioria dos grandes jornais: “O profeta está negociando o seu passaporte”, disse, referindo-se ao apelido que Getúlio lhe dera. Na verdade, já tinha negociado. Em 11 julho daquele 1967, a Secretaria de Estado expedira autorização ao Consulado-Geral para que emitisse para Samuel um passaporte comum, válido para todos os países da Europa Ocidental e para os Estados Unidos. Isso significava o seu iminente regresso. Para conseguir o passaporte, ele jurou. Segundo o telegrama secreto de 11 de julho, faria “uma oposição honesta e construtiva, oposta a subversão e aos extremismos, confiante na evolução final das bases revolucionárias lançadas em abril de 1964”. De acordo com o documento, o governo de Costa e Silva tomara a decisão de “aceitar o diálogo com o senhor Wainer”.

Talvez ele acreditasse num 1968 “divino, maravilhoso”, como previa a turma da Tropicália. Errou. Em 5 de abril, a portaria 177 proibiu a Frente Ampla, alegando que não atendera às exigências da lei para funcionar como partido político, nem mesmo possuía personalidade jurídica, tratando-se de uma agremiação para “fins espúrios”. Em dezembro, Costa e Silva baixou o AI-5, mergulhando o país na longa treva. Antes de ter os direitos políticos cassados, Lacerda escreveu um artigo na Tribuna da Imprensa, dizendo que havia cumprido a sua obrigação. Segundo ele, “talvez o Brasil tivesse mesmo que passar por isso para se curar de vez”.

 

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KARLA MONTEIRO nasceu em Diamantina, Minas Gerais. Formou-se em jornalismo pela PUC-Minas, trabalhou nos jornais Estado de Minas, Folha de S.Paulo e O Globo e nas revistas Veja, TRiP/TPM, entre outras. É autora de Karmatopia: uma viagem à Índia e coautora de Sob pressão: a rotina de guerra de um médico brasileiro. Samuel Wainer: o homem que estava lá , que será lançado em breve, é seu primeiro livro pela Companhia das Letras.

 

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