Diários do isolamento #64: Jessé Andarilho

13/06/2020

Diários do isolamento

Dia 64

Jessé Andarilho

 

Sabe quando você vai a um lugar, mas queria ter ficado em casa?

Sabe quando você fica, mas queria ter ido?

Foi o que aconteceu com muitos brasileiros no domingo. Deu uma vontade enorme de ir para as ruas e gritar por justiça, contra o racismo, contra o fascismo e pelo fim dos homicídios ocorridos nas favelas e nas periferias do todo Brasil.

A gente sabe que gritar e levar faixas não vai mudar muita coisa, mas só o pouquinho de atenção que a gente consegue vale, só o fato de poder desabafar e mostrar para o mundo todo que nos importamos com as vidas pretas, com as vidas pobres e com tudo de ruim que está acontecendo no Brasil e no mundo.

Em tempos de pandemia, em que temos um vírus que se multiplica e nos usa como transmissores, sabemos que o correto é ficar em casa e evitar fazer o serviço de delivery e de leva e traz para o corona.

É, minha gente. A coisa está ficando feia. Os números só aumentam e os governantes estão querendo abrir as lojas, as academias, os shoppings e a porra toda. Tudo mesmo. Ou melhor, quase tudo, menos os hospitais de campanha. 

Gastaram um caminhão de dinheiro e não conheço um hospital de campanha que funciona perfeitamente. Nenhunzinho pra contar história. Não sei por que não pegaram essa grana e consertaram os hospitais que já estavam sucateados desde antes da pandemia. Por que não investiram em mais testes, em ajuda às pessoas mais pobres que perderam seus empregos?

A verdade é que parece que eles não estão nem aí para o povo, para a maioria da população brasileira que carrega esse país nas costas, que paga por toda merda que vem lá de cima. Que trabalha firme e forte e que a cada dia que passa vem perdendo mais e mais direitos.

É foda ter de trabalhar tão duro, não saber quando ou se vai se aposentar. Trabalhar horas e horas e na hora de ir embora ainda precisar de um transporte público sempre lotado e que demora muito até chegar em casa. A grande maioria da população carioca mora a mais de duas horas de distância dos seus empregos. É só olhar para os trens e BRTs.

Depois de tudo isso que vos falei, a pessoa desce do transporte e vai caminhando para a sua casa quando de repente se depara com uma operação policial. Caveirão subindo o morro atirando, as pessoas se jogando no chão, as balas se achando e a chapa esquentando. Não existe bala perdida, o Estado é que não se encontra.

O STF proibiu as operações policiais nas favelas e morros do Rio de Janeiro no período da pandemia, pois as ações “enxuga gelo” estavam atrapalhando as entregas de doações aos moradores mais necessitados – necessitados pela falta de trabalho, porque a população teve que se recolher em seus lares.

Mas, como o ditado diz: “Manda quem pode e obedece quem tem juízo”. Só que dessa vez não funcionou muito bem. O problema é que o governador é um ex-juiz, mas já mostrou que sabe como manobrar para reassumir a profissão, caso precise. E foi assim que as operações continuaram e a bala comeu, atingindo mais inocentes como sempre.

Assim fica difícil protestar, ficar em casa também não garante imunidade e nem prevenção, já que o menino João Pedro foi metralhado dentro de casa enquanto seguia as recomendações das autoridades. 

Só nos resta viver com o dilema — se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Se for pra rua trabalhar, o bicho pega; se ficar em casa, morre de fome.

E é por isso que mais uma vez eu vou repetir, para ficar bem explicado. Não estamos no mesmo barco. Os ricos navegam, enquanto o pobre nada e vive a ver navios...

***

Jessé Andarilho nasceu em 1981 e foi criado na favela de Antares, no Rio de Janeiro. Filho de vendedores ambulantes, trabalhou com diversas atividades na sua comunidade, até ler seu primeiro livro, aos 24 anos. Foi quando, no trajeto de aproximadamente três horas que fazia de trem de sua casa até o trabalho, passou a usar o bloco de notas do celular para contar histórias. Dessas anotações surgiu o romance Fiel, publicado pela Objetiva em 2014. Em 2015, foi convidado para integrar o grupo de redatores da novela Malhação, da TV Globo. Foi diretor de reportagem do programa Aglomerado, da TV Brasil, e produtor da Cufa – Central Única das Favelas. Fundou o C.R.I.A., Centro Revolucionário de Inovação e Arte, e o Marginow, com a proposta de dar visibilidade aos artistas da periferia. Em 2019, publicou, pela Alfaguara, seu segundo romance, Efetivo variável. Atualmente, Jessé Andarilho realiza palestras em todo o Brasil, contando um pouco da sua história e mostrando como sua vida foi transformada pela literatura.

 

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