Coluna diferente em tempos diferentes.
Helen Zaltzman, a mente pra lá de brilhante por trás do podcast The Allusionist, está inventando coisas novas nesses tempos de quarentena. São episódios mais curtos, que ela chama de tranquillusionists, em que ela, por exemplo, lê somente as punchlines de piadas clássicas. Ou recita o nome e as raças de cachorros campeões de mais de um século de concursos. Ou gera um estranho poema a partir das palavras da letra de Imagine, lidas de trás pra frente.
O primeiro desses episódios “de bolso”, surgiu a partir da colaboração dos ouvintes, que enviaram pra Helen os seus exemplos preferidos de palavras soothing, ou tranquilizadoras…
Ela simplesmente pegou a lista derivada dessas contribuições, colocou em ordem alfabética, encomendou como sempre uma trilha linda ao maridão e leu as palavras. Eu ouvi lavando banheiro aqui em casa, duas semanas atrás. Comecei com um sorriso, passei ao modo intrigado, e terminei como de costume encantado com a capacidade que ela tem de tirar novidade, invenção e beleza das palavras.
Achei especialmente interessante o lado wiki, colaborativo da coisa. Nós não estamos ouvindo uma lista de palavras que ela considere tranquilizadoras. Mas palavras que dezenas de pessoas anônimas lhe deram. E ao mesmo tempo em que você se deixa levar pelo som da voz da narradora e pelas improváveis e férteis associações cruzadas que vão surgindo entre essas palavras avizinhadas agora de modo algo aleatório, algo da tua cabeça fica pensando “quem é a pessoa que pensa que tal palavra merece estar nesta lista”.
Às vezes é o som.
Às vezes, a ideia.
Há palavras estrangeiras (terão sido escolhidas por falantes de cada uma dessas línguas? Ou por falantes de ainda outros idiomas?).
Foi esse lado de sondagem do impossível, de tentar entrever a nuvem de colaboradores por trás da lista final, que me deixou mais encantado, e que permitiu que a experiência toda fosse mais do que um experimento de ASMR lexical.
E eu fiquei pensando… e se a gente traduzisse a lista?
E achei sedutora a ideia. Porque acima de tudo a tradução acrescentaria uma camada de opacidade à coisa toda. O que estará por trás de cada palavra escolhida pelo tradutor? Uma tradução simples, direta, adaptada, inventada?
Porque eu me dei liberdades, ajustei detalhes, me deixei levar.
Será que a nova ordem alfabética vai gerar novos sentidos? E se eu, tradutor, simplesmente deixasse as palavras que não eram inglesas sem comentários (ela glosava na hora de ler)? E se eu não contasse qual dessas palavras já estava em português na lista da Helen (que leu com uma pronúncia perfeita)?
Pedi autorização à dona da coisa, e ela gostou da ideia.
Improvisei uma trilha muito fuleira com som de vibrafone no teclado, gravei a lista direto no celular (com direito a barulho intrometido). Li mais rápido do que deveria. Em suma, ficou tudo oitocentas vezes pior que o dela, mas de alguma maneira esse dado “espontâneo” me pareceu captar alguma coisa importante. Alguma coisa de vida.
Sei lá.
Mas vai aqui pra você.
O único episódio em português do Tranquilusionista.
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Caetano W. Galindo é professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná e doutor em Linguística pela USP. Já traduziu livros de James Joyce, David Foster Wallace e Thomas Pynchon, entre outros. Ele colabora para o Blog da Companhia com uma coluna mensal sobre tradução.