Diários do isolamento #67: Jessé Andarilho

20/06/2020

Diários do isolamento

Dia 67

Jessé Andarilho

 

Toda semana ela aparece de um lado diferente. Às vezes na boca da esquerda e às vezes na boca da direita.

Para alguns ela é vilã, para outros ela é a solução, mesmo sem comprovação.

Estou falando da cloroquina.

Depois de entrar nas discussões e virar uma droga política, depois de quase ter sua bula modificada pelo presidente, que não tem formação científica e nem farmacêutica, depois de ter sido mal comparada com tubaína e ridicularizada pela esquerda, me vem a notícia de que a OMS teria voltado a fazer novos testes com a bendita.

As redes sociais se encheram de inimigos da tubaína e defensores das besteiras que o presidente fala. "O cara tem Messias no nome, como não vai saber das coisas?" Ouvi uma pessoa falando essa parada na rua, para não ter que citar o nome do meu parente. Tenho um amigo chamado Henrique que até agora não enricou. O nome não tem nada a ver com a realidade, bebê. Mas voltando para a cloroquina, ela ficou a semana passada todinha sendo exaltada pela galera da direita que não acredita na mortalidade causada pelo vírus.

A semana passou e de repente a cloroquina volta para a boca da esquerda. O presidente malucão dos Estados Unidos da América mandou todos os lotes de cloroquina pra cá e disse que não quer mais saber dessa porra. Se ele que adora uma bomba não quer a danada da cloroquina, quem vai querer?

Pra piorar a situação, o cara ainda cita a gente como exemplo a não ser seguido. Além de não ser seguido, não seremos aceitos por um bom tempo.

E pensar que o Brasil era visto como um país maneiro, simpático e legalzinho, e o passaporte brasileiro, que era tão cobiçado, agora é radioativo.

Vou falar pra vocês que tá difícil. É muita informação na vida da pessoa. O coro comendo no Brasil, os números só aumentando e aqui no meu bairro estamos vivendo como se fosse uma eterna semana de Natal e Ano-Novo. Quase todo mundo nas ruas, bares lotados, futebol nos campos e vida que segue.

Andar de máscara aqui é sinônimo de piada. E se você fala com alguém sobre o corona, eles dizem que estão prevenidos, pois estão fortalecendo o sistema imunológico, já compraram cortisol, ivermectina e isso é o suficiente.

E assim segue a nossa humanidade. Com cloroquina ou sem cloroquina, cada um tem sua maneira de ver as coisas. Pena que as vagas de UTI serão divididas por quem fica em casa quando pode com quem pode, mas não quer saber, e com quem sabe e diz que é imune porque bebeu pinho sol e tem uma cartela de cloroquina guardada.

 

***

Jessé Andarilho nasceu em 1981 e foi criado na favela de Antares, no Rio de Janeiro. Filho de vendedores ambulantes, trabalhou com diversas atividades na sua comunidade, até ler seu primeiro livro, aos 24 anos. Foi quando, no trajeto de aproximadamente três horas que fazia de trem de sua casa até o trabalho, passou a usar o bloco de notas do celular para contar histórias. Dessas anotações surgiu o romance Fiel, publicado pela Objetiva em 2014. Em 2015, foi convidado para integrar o grupo de redatores da novela Malhação, da TV Globo. Foi diretor de reportagem do programa Aglomerado, da TV Brasil, e produtor da Cufa – Central Única das Favelas. Fundou o C.R.I.A., Centro Revolucionário de Inovação e Arte, e o Marginow, com a proposta de dar visibilidade aos artistas da periferia. Em 2019, publicou, pela Alfaguara, seu segundo romance, Efetivo variável. Atualmente, Jessé Andarilho realiza palestras em todo o Brasil, contando um pouco da sua história e mostrando como sua vida foi transformada pela literatura.

 

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