Diários do isolamento #80: Jessé Andarilho

27/07/2020

Diários do isolamento

Dia 80

Jessé Andarilho



Vou te dar uma ideia e passar uma visão do meu mundo que talvez você nem imagina, ou nem percebeu que vivemos numa realidade paralela, em uma cidade partida e totalmente diferente.

Sei que tá rolando um medo de uma ditadura, de uma possível censura de um governo autoritário e opressor.

E se eu falar pra você que os moradores das favelas convivem com isso praticamente a vida toda?

A favela nem sabe o que é democracia. Aqui não tem presidente, governador e nem prefeito. Quem manda aqui são os caras.

Às vezes é um comando que dita as leis e as ordens, aí tem uma guerra ou algum golpe de Estado e a facção muda, e consequentemente as coisas também mudam.

Falando de censura, cresci sabendo que em algumas regiões não era permitido usar roupas vermelhas, em outras não podia falar a palavra "três", o certo era pronunciar "dois + um", vocês acreditam?

Conheço pessoas que quase morreram por usar uma camisa do Chapolin Colorado. É foda.

Voltando para a democracia, não são os moradores que escolhem os "donos" das favelas. Mas temos que respeitar e acatar todas as ordens e direcionamentos.

Aí vem os amigos do asfalto e colocam na nossa cabeça que a gente tem que ser de esquerda ou de direita. Que político tal é melhor do que o outro e que, se não for do lado deles, você é inimigo. Mas a grande verdade é que somos incentivados a comprar brigas que nem são nossas.

A gente ainda tá lutando por saneamento básico, por segurança, por transporte de qualidade, por educação básica e por empregos melhores.

Hoje uma pandemia acabou com as aulas, mas por aqui são os tiroteios frequentes que interrompem a nossa educação.

 Um vírus assustou a população e levou muitas vidas, mas por aqui o monstro é a bala disparada na nossa direção o tempo todo. Dizem que é perdida, mas sempre acerta o mesmo alvo. A queda é quase sempre de um corpo negro.

Vivemos em um mundo dentro de uma cidade, de um estado e de um país. Às vezes a distância geográfica é bem pequena, mas a diferença das leis e do modo de viver é gigante.

Não podemos medir as vidas das pessoas com as nossas réguas. Vocês são diferentes de nós, vocês não podem nos obrigar a comprar as brigas de vocês.

Um amigo meu jornalista, morador da Zona Sul, me disse essa semana em uma live que ele cresceu ouvindo "Cuidado com a favela".

Gente, alguns moradores aqui na favela cometem crimes? Sim!

Só que os crimes cometidos pelos vizinhos de vocês são bem maiores e atingem uma quantidade de pessoas infinitamente maior. A grana desviada da compra de respiradores mata nosso povo. O desvio de verba das merendas prejudica nossa educação. E os outros crimes de colarinho branco que vocês conhecem muito bem não são cometidos por favelados, e o impacto é infinitamente maior.

Não tô aqui propondo uma briga de classes. Estou abrindo seus olhos pra dizer que somos sim diferentes, mas não somos ameaças, somos vítimas. Não estou me vitimizando, só estou desenhando o que muita gente ainda não entendeu.

Somos capazes de ajudar a cidade como um todo, ganhamos medalhas olímpicas, cozinhamos comidas estrangeiras nos restaurantes chiques que vocês frequentam, limpamos as sujeiras de vocês, demoramos horas parados nos transportes para lhes servir, e mesmo assim sorrimos e somos felizes, do nosso jeito.

Então, quando for me pedir pra escolher um lado, saiba essa será a minha resposta:

Entre a Esquerda e a Direita, eu continuo sendo favelado!

 

***

Jessé Andarilho nasceu em 1981 e foi criado na favela de Antares, no Rio de Janeiro. Filho de vendedores ambulantes, trabalhou com diversas atividades na sua comunidade, até ler seu primeiro livro, aos 24 anos. Foi quando, no trajeto de aproximadamente três horas que fazia de trem de sua casa até o trabalho, passou a usar o bloco de notas do celular para contar histórias. Dessas anotações surgiu o romance Fiel, publicado pela Objetiva em 2014. Em 2015, foi convidado para integrar o grupo de redatores da novela Malhação, da TV Globo. Foi diretor de reportagem do programa Aglomerado, da TV Brasil, e produtor da Cufa – Central Única das Favelas. Fundou o C.R.I.A., Centro Revolucionário de Inovação e Arte, e o Marginow, com a proposta de dar visibilidade aos artistas da periferia. Em 2019, publicou, pela Alfaguara, seu segundo romance, Efetivo variável. Atualmente, Jessé Andarilho realiza palestras em todo o Brasil, contando um pouco da sua história e mostrando como sua vida foi transformada pela literatura.

 

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