Diários do isolamento #81: Jarid Arraes

28/07/2020

Diários do isolamento

Dia 81

Jarid Arraes

 

Estou me preparando para dar um depoimento sobre Maria Firmina dos Reis e seu livro Úrsula, primeiro romance abolicionista do Brasil e também primeiro romance publicado por uma mulher no Brasil. Uma mulher negra. Bom, em seu tempo, era chamada de mulata, como muitas vezes já fui, especialmente quando criança e adolescente. Hoje tento organizar meu conhecimento sobre Maria Firmina e fazer o meu melhor, porque meu juízo não está no lugar e é como se mesmo uma coisa que amo e conheço pudesse escapar do meu cérebro. Ou se embolar com mil fiapos de pensamentos incompletos.

Essa semana foi a primeira vez que uma pessoa aqui de casa saiu. Problemas que não podiam ser resolvidos de outras formas e também não podiam mais esperar. Talvez essa tenha sido a única vez — desde 11 de março, quero salientar —, ou talvez seja uma vez entre outras raras que virão. Mas a verdade é que quando ouvi a porta batendo, o sentimento de não-me-importa-mais veio deitar comigo na cama.

Tantas coisas parei de fazer por ter consciência coletiva. Tantas coisas até mesmo “permitidas” eu poderia ter feito, como ir ao mercado, se eu não tivesse ainda um tratamento de câncer para terminar. O que eu fiz foi nada. Levei todos esses meses da melhor maneira que consegui. Cansada, espremida, torcida como um braço tentando alcançar algo, congelada pelos ventos frios que moram na varanda, no limite entre a raiva e a apatia, escrevendo um diário todas as semanas, um diário que não consigo transformar em algo que expresse, que conte, que mostre. É uma foto de um dia, mas há tanta coisa na jornada de uma foto, antes e depois dela, e nada disso consegue romper a barreira que meus dedos encontram quando tocam o teclado.

Eu não vou sair de casa nas próximas semanas, mas o sentimento que tenho agora é exatamente o que eu tentei evitar durante esses meses: qual a importância disso para mim? Pontualmente para mim.

Como pessoa que acredita na política de pensar coletivamente, não deixei de pensar que importa para a sociedade. Não sei, por cálculo, qual o impacto do meu isolamento. O meu individual. Mas sei que esse é meu papel. Vou cumprir, desempenhar, atuar, insistir. Mas não comigo mesma. Comigo mesma, eu acho que só não importa mais.

Essa sinceridade assusta?

Compartilho o poema abaixo, que escrevi:

 

fábula

desistir é coragem difícil
somos programados
para tentar

deslizando aos barrancos
a pele das pernas
esfolada
os pulsos marcados
pelos rosários

é preferível morrer
sorrateiramente
em gorduras
açúcares
refluxos
pedras nos órgãos
no peito

mas desistir
essa é uma coragem
que todos
não temos
 

Meu melhor amigo tatuou os primeiros versos no braço. Desistir é coragem difícil. E é surpreendente para mim quantas pessoas já me escreveram por se identificarem tanto com esse poema. Transformaram em pôster, bordado, tanta coisa. Eu penso que, pelo menos para um certo grupo de pessoas, a desistência está sempre rondando e abanando o rabo como um gato irritado. Olhamos a desistência que habita nosso quarto e muitas vezes nos esquecemos em seus olhos. Desistir é possível, mas que difícil desistir de tentar.

Não acho que eu tenha desistido de me importar com minha saúde. Esse não-importa é o sentimento que boia deitado na superfície e parece que é libertador porque está de barriga virada para o céu. Parece uma liberdade acompanhada da palavra finalmente. Para mim, uma sensação boa. Que leve é não me importar mais.

Mas com a vida? A própria?

Fraqueza, dizem. Covardia, dizem. Loucura, dizem.

Só que vocês não percebem como é difícil chegar a esse lugar?

Na faculdade de psicologia que fiz e fiquei por um fio de terminar, uma professora que eu amava muito, da Gestalt Terapia, disse que há muitas formas de cometer suicídio. Desde então reparo nas tentativas disfarçadas dos outros e penso se estão conscientes de que praticam esse caminho.

Estar consciente é também uma coragem difícil.

Mas, vejam bem, não vou me matar, mesmo que São Paulo seja a cidade ideal para isso. Há outras formas de morrer. Uma delas começa com esse sentimento-pessoa na ladainha quase reza de não importa mais, de que adianta, não importa mais, de que adianta.

É estranho, contraditório, confuso e surpreendente, mas continuo querendo viver, ainda que esse bicho more comigo.

Quero silenciar seu sibilo, ainda esperando uma vacina que, de alguma forma, seja possível nesse ano. Ainda quero escrever o romance que pratico escrever. Ainda quero encontrar minhas amigas para comer torrada com salmão e cream cheese e acabate, coisa que comi pela primeira vez há poucos meses. Ainda quero ir aos cinemas cheios de frescura que existem em São Paulo, aqueles com as poltronas largas e com cardápio, especialmente o que tem pipocas dentro de bolinhas de chocolate. Ainda quero ver a Giulia Nadruz na montagem brasileira de West Side Story, que foi adiada por causa da pandemia. Eu amo a Giulia Nadruz. E eu, sem dúvida alguma, ainda quero estar aqui para ver a Lady Gaga divulgar o Chromatica com performances ao vivo. É estranho, contraditório, confuso e surpreendente. Ao mesmo tempo deixo o corpo boiar no açude do seja-o-que-acaso-trouxer e me tranco dentro desse apartamento, felizmente não tão pequeno, enquanto espero e não espero pelo melhor.

Não faço sentido. Sozinha, sou apenas um corpo humano funcionando, apesar das falhas no hardware e no software. Faço como meu instinto comanda. No último ano, como me surpreendi vendo a força desse instinto. Monstruoso. E sob a garra do meu monstro, me projeto.

Para as pessoas lá fora importa. Talvez importe para mim, na verdade.

Mas vou deixar espaço na cama para a imagem do tanto faz. Quanto mais a gente se deita sob o mesmo lençol, menos assustadora parece a realidade.

Ah, então é isso?

Acho que tive um insight.

Minha ex-professora sorriria pra mim.

 

***

Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nomeAs lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.

 

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog