Diários do isolamento
Dia 93
Jarid Arraes
Quatro livros em quatro dias, seis documentários em uma semana, uma série nova, de humor, duas vezes sentada à mesa para jantar, nenhuma para escrever. Dois gatos dormindo em cima de mim. Um cachorro que foi ao canil correr e tomar banho de piscina. Dois bolos de chocolate, um de macaxeira, um de milho.
O dobro da dose de analgégicos duas vezes por dia.
Não é difícil ver como fui me dobrando durante todos esses meses. Nas últimas semanas, sem conseguir sentar, fui descolorindo a alma dia após dia. Deitada de lado, deitada de barriga pra cima. Vivendo na madrugada, pegando no sono seis ou sete da manhã, acordando três da tarde. Não consigo tirar uma frase completa deste teclado e olho para o calendário vendo os prazos se aproximando. Os dias passam e já não sei o que significa essa experiência.
Significa que sou responsável? Que me importo? Que tenho medo? Significa que consigo ficar isolada o ano inteiro? Que ficaria mais um ano? Significa que sou como uma adolescente presa num quarto? Ou o que posso dizer sobre mim, de elogioso, para justificar essa força de viver que se vira numa brita tão pequena?
Ontem uma pessoa de que gosto muito fez um stories numa aglomeração no Rio de Janeiro. O vídeo se aproximava do rosto de alguém que estava sem máscara. Mas a pessoa estava lá, no mesmo lugar, perto daquele alguém, e sem máscara também. É que, segundo ela, e que ninguém enchesse mais o saco, ela já tinha pego covid-19.
A Lady Gaga fez um show no VMA, dançando sem parar e cantando ao vivo com máscara.
Aceitou todos os cinco prêmios que venceu usando máscaras diferentes.
Foi a única artista (junto de Ariana Grande, que fez uma performance com ela) que usou máscara. Disse que não era certo que apenas os dançarinos usassem, que isso passava uma mensagem errada sobre privilégio. Insistiu, como um disco arranhado (ela disse): usem máscaras, usem máscaras. Os comentários do vídeo da apresentação no youtube repetem: se a Lady Gaga consegue dançar e cantar ao vivo com máscara, você consegue ir ao supermercado usando uma.
Muita gente me escreve dizendo que lê esse diário. Alguns dizem que se identificam, outros dizem que me descobriram por aqui e aí compraram meus livros, uma moça gentil mandou uma mensagem pra mim falando que queria me dar um abraço.
Estou com um livro em pré-venda, o Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis (link da pré-venda: amzn.to/31CKv8f), e se não fosse a pandemia, eu já estaria com o evento de lançamento todo planejado. Eu adoro abraçar as pessoas que leem o que escrevo. Eu sempre coloco uma cadeira ao meu lado para que a gente possa conversar, nem que seja rapidinho, e tirar fotos lado a lado. Eu detesto quando um evento organiza um momento de autógrafos (eu nunca faço autógrafo, sempre escrevo uma dedicatória) e as pessoas ficam de pé ao meu lado, meio se abaixando pra gente caber na foto. Eu detesto essa percepção, essa imagem criada. Muitos dos leitores dos meus livros são autores também, ainda que secretamente, mesmo que ainda sintam vergonha de compartilhar com o mundo. E quem vai a um evento apoiar meu trabalho sempre vai ser meu amigo. Se ficar até o final, provavelmente será convidado para o bar. Que saudade disso.
É confuso esse sentir saudade. Às vezes vejo algo que me lembra alguma amiga específica e transbordo de vontade de escrever “estou com saudade”. Às vezes digo “estou com saudade” e sinto a necessidade de completar com “mesmo, de verdade, muita”, porque a saudade que eu dizia sentir antes de experimentar uma pandemia é completamente diferente. De um jeito que me parece agora uma saudade sendo treinada. Esperando sua vez.
Ainda não fui fazer o exame pra ver que catrevagem se quebrou em minha coluna, nem consegui marcar a radioterapia. O laboratório acabou não fazendo todas as análises pedidas pela médica que acompanha meu câncer e aí tive que fazer uma nova coleta de sangue.
Imagina. Tudo de novo. A enfermeira toda coberta e protegida, toda gritando PANDEMIA, subindo pelo elevador, sendo observada pelas câmeras do prédio, quem sabe assustando algum vizinho (sempre torço por isso). Foi a segunda vez que quase desmaiei por causa dessas coletas de sangue. A primeira vez foi horas antes e a segunda vez foi segundos depois, quando eu saí convicta para a cama e quase apaguei antes de conseguir deitar. Nunca tinha passado mal por causa disso, sempre olho pra agulha e acompanho os tubinhos sendo enchidos. Desmaiei outra vez, não relacionada ao jejum ou a coleta. Desmaiar é diferente de dormir, é diferente de ter pesadelo, é diferente de ser derrubada por anestesia. Quem sabe eu explique melhor num livro.
Estou pesquisando para escrever o tal romance terrível que me assombra. Daí vieram os quatro livros e seis documentários. Estou brincando com o que não devia.
Mas eu já virei uma brita tão pequena. O que pode acontecer de pior?
Eu sei responder. E vocês já sabem que sou pessimista.
***
Jarid Arraes nasceu em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 1991. Escritora, cordelista e poeta, é autora dos livros Um buraco com meu nome, As lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras. Atualmente vive em São Paulo, onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Tem mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel. Redemoinho em dia quente (Alfaguara) ganhou o prêmio APCA de Literatura na Categoria Contos/Crônicas.