Quase-poesia-ou-ovni

27/06/2022

Robert Morris, Sem título (Four Mirrored Cubes), 1965

 

Sempre me comoveram textos que caminham para as fronteiras dos gêneros: um romance feito de cartas; poemas que são diários ou notas ou falas; ensaios que são poemas; peças que são testes; tradução que é leitura... Na expressão espirituosa e certeira de Christophe Hannah: ovnis, objetos verbais não identificados.

Fora do campo verbal, também me atravessam as obras que estão na fronteira das linguagens: esculturas que são paisagem, filmes-manifestos, fotografias que são ensaios, gravuras que são textos, filmes na forma de diários, livros que são obras visuais...

Gertrude Stein, Godard, Anne Carson, Montaigne, Choderlos de Laclos, Aline Motta, Antony Gormley, Mira Schendel, David Perlov, Tamara Kamenszain, Grace Passô, Bolaño, Walter de Maria, Bernadette Mayer, Ruy Duarte de Carvalho, Taryn Simon, Augusto e Haroldo de Campos, Mario Montalbetti...

Por aqui temos usado a expressão “poema expandido” para tratar de alguns desses atravessamentos. Gosto de dar uma oficina-disciplina chamada assim, tentando lançar luz sobre textos que trabalham com elementos híbridos, com recursos mais identificados com determinadas “etiquetas” e que se tocam e transformam o espaço do texto. Proponho partir do ponto de vista da poesia, mas o termo “expandido” é quase um lugar comum na arte, desde o texto clássico de Rosalind Krauss, “A escultura no campo expandido” (nesta tradução de 1984, Elizabeth Carbone Baez usa o termo “ampliado” para expanded). Krauss busca pensar o caminho tomado pela escultura desde o final do século XIX, analisando algumas de suas manifestações já dos anos 1970 que seguem na direção da instalação, da land art, num abandono da identificação da escultura com o monumento (convenção nos séculos anteriores). A crítica mostra que a tentativa de encaixar obras tão diversas dentro de uma mesma categoria (“escultura”) traz certo historicismo vanguardista ao pensar numa espécie de evolução de formas.

Encontrei há pouco um questionamento precioso da expressão “literatura expandida”, no último livro de Fabio Morais, Escritaexpográfica, que me fez rever este uso do “expandido”. O texto de Fabio também pode ser lido como um ovni: é tese de doutorado, sala de exposição, romance de formação, com a proposta de ser ao mesmo tempo análise minuciosa de obras visuais brasileiras que trabalham com palavras. A certa altura desse experimento-acontecimento, o artista traz uma discussão acerca do termo “expandido”, mostrando que a palavra está ligada a um contexto neocolonial (e a um debate cultural importado) e que foi trazida para o Brasil de forma acrítica, que naturalizou o ideal hiperneoliberal presente no termo: ideal de dominação violenta, de conquista sem limite etc. A ideia de “expansão”, segundo ele, implica a existência de um território definido que precisa ser ampliado, como numa guerra. Ora, eu gostaria de pensar o poema justamente como aquilo que não se apreende, aquilo que escapa, que não tem essência nem território definido. O poema não buscaria se expandir, mas, ao contrário, é atravessado e tomado pelo mundo, está em deslocamento e transformação. Portanto, ele não poderia ser “expandido”, pois não tem um solo, território definido, estabelecido, nítido.

Fábio sugere o termo “quase literatura”, a partir do “quase cinema” de Hélio Oiticica. Que, pensando bem, se aproxima de Drummond, da “Procura da poesia” (em busca dos poemas em “estado de dicionário”), e de Augusto de Campos (em diálogo com Drummond), no poema “Não” (veja o poema aqui), cujo texto transcrevo abaixo:

“meu amor dor / não é poesia / amar viver m/ orrer ainda/ não é poesia// escrever p/ ouco ou mui/ to calar fa/ lar aindan/ ão é poesia// humano au/ tênticos/ incero ma/ s ainda nã/ o é poesia// transpi/ ra todo o/ dia mas a/ ainda não/ é poesia// ali ond/ e há poe/ sia ain/ da não é/ poesia// desaf/ ia mas/ ainda/ não é p/ oesia// ri ma/ s ain/ da nã/ o é po/ esia// é qu/ ase/ poe/ sia/ mas// ai/ nd/ an/ ão/ ép/ o/ e/ s/ i/ a”

É quase, mas ainda não.

Marília Garcia

Marília Garcia nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros, Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017; vencedor do Prêmio Oceanos de Literatura 2018).

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