Diante do espelho

01/07/2022

Foto: arquivo pessoal do autor

 

De mim já disseram muitas coisas. Já disseram, por exemplo, que gosto de conversar, que não demonstro timidez, e que tudo o que digo, ou quase tudo, é inventado. Já disseram que só conto mentiras, disseram que não sei mentir. De mim já disseram que tenho as mãos macias de quem nunca trabalhou, de quem conhece só papel e caneta, e que parecem almofada de costureira, já disseram. De mim já disseram, e disseram várias vezes, que tenho a cabeça grande, os olhos ligeiramente puxados, que minhas costas são largas e as pernas são curtas, que quando me assento fico mais alto do que quem tem as pernas compridas. De mim já disseram que sou confortável para se apoiar. De mim já disseram que não faço cerimônia com o mundo, que digo atrocidades sem o menor pudor, e que isso na minha boca soa muito natural. De mim já disseram que não sei ouvir, que sou excelente ouvinte. Já disseram que minha pele cheira a leite, e que de lado pareço um navio. De mim já disseram que tenho a voz estridente, que quando me deito minha voz é sexy. Disseram que meus olhos costumam amarelar, e que ficam mais amarelos quando estou sem comer ou preciso dormir. De mim já disseram que sou desafinado, que não entendo nada de música, que deveria ser proibido de cantar. Já disseram que escrevo frases musicais, e que um dos meus livros tem o ritmo de um acordeom. De mim já disseram que só rio de mim mesmo, e das minhas próprias piadas. Já disseram que meus lábios se escondem dentro da boca. De mim já disseram que tenho o rosto redondo, desenhado por um compasso, mas isso faz muito tempo que disseram. De mim já disseram que seria filho de Xangô, e isso me disseram na Bahia, em um porão cheio de fotografias de Pierre Verger. De mim já disseram que guardo uma alegria infantil. Disseram que me falta ceticismo, que sou cético demais. Que nunca abandono um pensamento, que abandono todos os pensamentos, que sempre discordo. Que eu daria um juiz afetuoso e implacável. De mim já disseram que sou contraditório, que tenho um raciocínio matemático. De mim já disseram que nas manhãs muito claras meus olhos tendem para o verde, mas é preciso imaginar o verde. Já disseram que meus pés são como o tronco de um carvalho, como as patas de um dinossauro. De mim já disseram que tenho cara de bancário. Que sou anarquista, comunista, burguês. Já disseram que me visto mal, que minhas camisas estão sempre furadas, que gasto demais com bobagens, que não sabem com o que gasto, que devo ter uma mulher com filhos escondida em Montes Claros. De mim já disseram que não deveria criticar tanto, ser tão ácido e impiedoso, que sou explosivo, sarcástico, ansioso, exagerado. Já disseram que sou muito organizado, que sou bagunçado. De mim já disseram que, se fosse um ator, seria o Bill Murray. Já disseram que tenho sorte de ser engraçado, caso contrário seria insuportável. Disseram que eu deveria fazer programas de humor. De mim já disseram que sou feio, que sou bonito, que sou simpático, que posso ser arrogante. Que deveria procurar um médico para tratar do meu calor. De mim já disseram que tenho um hemangioma no fígado, que preciso operar uma hérnia, que posso envelhecer com a hérnia, se quiser. Já disseram que tenho uma síndrome metabólica, que tenho um espírito perturbado, que tenho um espírito generoso. De mim já disseram que, pela minha constituição física, estou propenso a projeções fora do corpo, e isso me disseram na mesa de um restaurante natural. De mim já disseram que meu pescoço era o mais largo que haviam medido naquele dia em uma rodovia federal. Já disseram que tenho os ossos pesados. De mim já disseram que me equilibro na melancolia. Já disseram que gaguejo quando estou nervoso, que faço barulho para tomar café, que nunca sei se uma criança é menino ou menina. De mim já disseram que entro em transe quando calço os sapatos pela manhã. Já disseram que preciso exercitar o corpo, que deveria nadar, deveria caminhar, lutar boxe, que deveria pagar minhas dívidas. Já disseram que não mastigo direito, que bebo depressa, que tenho paladar aguçado, que tenho paladar infantil. De mim já disseram que faço boas descrições de vinhos. Já disseram que eu deveria opinar mais em público, que deveria me calar. Já disseram que minhas palavras ferem como um coturno. De mim já disseram que herdei o olhar do meu pai, que tenho cara de bósnio, de louco, de urso. Disseram que 5% do meu sangue vem do País Basco. De mim já disseram que sou um mal necessário. Já disseram que mudo de sotaque de acordo com o assunto, que mudo de personalidade quando falo outra língua. De mim já disseram que não fico bem nem de laranja nem de amarelo, e que envelheço com certos tipos de boina. De mim já disseram que, na brincadeira em que um finge ser o outro, deitar no sofá é a melhor forma de me imitar.  De mim já disseram que, ao ler um texto, nunca aceito a primeira versão, que sou obcecado por correções. E que tudo o que preciso é de um rascunho para me divertir. Já disseram que as coisas que escrevo não se parecem comigo. Isso é o que disseram, isso é o que dizem, e há sempre um grau de silêncio entre o que dizem e o que queriam dizer, o que dizem e o que digo que disseram. Nesses pequenos abismos se escrevem as biografias. Em casa, diante do espelho, às vezes me distraio lavando o rosto, e com o canto do olho vejo um reflexo em fuga. É a ele que me apego com todas as forças.

Marcílio França Castro

Marcílio França Castro nasceu em Belo Horizonte, em 1967. Mestre em estudos literários pela UFMG, publicou, entre outros, Histórias naturais e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse, pelo qual recebeu o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional.

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