Sobre a mesa, uma caixa com sessenta e dois lápis de cor, um conjunto de canetas esferográficas coloridas, um estojo japonês de canetas que têm a ponta semelhante a um pincel, um estojo de lápis pastel, um boné do Lula, um estojo que apareceu do nada, com um óculos já sem uso há muito tempo e um risco numa das lentes, o resto de uma flor que o marido deu e que agora virou planta, um envelope de banco com contas rabiscadas e anotações sobre o que fazer durante a semana, um pote com canetas, lápis, alicate de cutícula e tesoura, uma cola em bastão, um ventilador de rosto pequeno, usado para ventilar o celular durante as lives, já que ele esquenta e para de funcionar depois de quinze minutos, um volume de Em Busca do Tempo Perdido, cujas páginas sofreram intervenções plásticas como imagens, colagens e desenhos, alguns papeis espalhados, fones de ouvidos embaralhados, marcadores de livros sem uso, uma pilha de livros utilizados nas aulas, um enfeite trazido do nordeste pelo marido, um vaso com uma flor de papel, o Arco e a Lira, do Octavio Paz, migalhas de torrada, formigas mortas ontem à noite, depois de terem assediado um fragmento da torta de nozes deixada ali sem querer. Sob a mesa, no vão entre um dos pés e o armário de porta envidraçada, um tapete turco comprado trinta anos antes, numa viagem com um namorado esquecido, sobre o qual a Samba se estende, numa coincidência exata de tamanho de um e da outra. É a casa dela, cujo único móvel é um osso que ela rói toda vez que fica enciumada, uma espécie de chupeta compensadora; nos dias mais quentes ela dorme no cimento queimado do quarto, fora de sua casa: é o quintal. Antes de dormir, a dona se despede da cachorra, pedindo permissão para entrar naquela casa sem móveis, e a cachorra permite, oferecendo a barriga ao carinho, o rosto aos beijos e abraços e o ouvido às confissões do dia e da madrugada que virá. O que ela faz durante a noite ninguém sabe, se dorme, se passeia pelo resto da casa, se sonha e, se sonha, o que sonha. Em frente à mesa, uma dessas cadeiras confortáveis de escritório, própria para acomodar a coluna; ela gira e muda de altura, custou caro, mas a dona mal a usa, preferindo escrever e trabalhar sobre o sofá nada apropriado, que afunda e machuca a coluna. Ela escreve sobre as coxas, ou “nas coxas”, como prefere dizer. Na mesa, no lugar adequado, ela não consegue criar, apenas dar aulas. A visão da janela reconforta, de árvores, grama e uma escadaria que leva à biblioteca, mas que, olhada de relance, parece levar ao nada, ao céu ou talvez a um parque. Na ameixeira em frente a uma das janelas, papagaios vêm todo mês de julho pousar sobre os galhos, comer as ameixas e cuspir os caroços, que enchem o quintal, misturados aos cocôs da Samba e ao limo que se acumula, deixando as pedras escuras. Uma mangueira azul se espalha pelo gramado, anunciando que aqui é uma casa e que pessoas moram nela. As janelas são grandes, quadradas e separam sem certeza o mundo de dentro e o de fora, às vezes confinando o dentro e outras apresentando o fora e ela pensa que janelas são limites que se disfarçam. Ela pensa muito e deveria aproveitar mais o tempo para desenhar e pintar, com tantos estojos de canetas coloridas sobre a mesa.
Texto escrito com o mínimo de adjetivos e sem referências a “eu”.