O dia em que mamãe ficou em casa

28/10/2022

Foto de Maria Fernanda Pissioli

 

Na sequência final de Indiana Jones e o Templo da Perdição, um enfeitiçado Harrison Ford está prestes a sacrificar a bela Kate Capshaw na lava de um vulcão na Índia quando é queimado com uma tocha por Short Round (Ke Hey Quan). “Indie, eu te amo!”, diz o pequeno órfão ao cometer a agressão. O choque desperta o herói do Sono Negro de Kali, um transe induzido pelo sacerdote malvado, e o faz salvar a mocinha e acabar com os vilões.

Na reta final do segundo turno desta eleição de vida ou morte, consegui despertar minha própria mãe do Sono Negro de Carlos. Trata-se de moléstia a afligir pelo menos 50 milhões de brasileiros que, como ela, cravaram 22 no primeiro turno – mesmo após quatro anos de um governo que os tornou mais pobres, mais doentes, mais burros, mais inseguros, que destruiu o país e matou, por baixo, 100 mil pessoas de Covid.

Como no filme de Spielberg, esta também é magia negra pesada, conjurada por um sacerdote delinquente com objetivos políticos terríveis. Mas que, em vez de ser forçada goela abaixo de suas vítimas na forma de um líquido asqueroso vertido de um crânio humano, é entregue em agradáveis pílulas diárias, frequentemente cheias de humor, no Whatsapp de cada uma delas, há pelo menos seis anos.

A bruxaria operada por Carlos Bolsonaro, pelo Alto Comando das Forças Armadas e pelo tal gabinete do ódio integra o maior experimento psicossocial da história humana. No momento em que escrevo, a nove dias da eleição, ele vem passando em todos os testes. Nem os totalitarismos do século 20 tiveram tamanho poder de persuasão; faltou a Joseph Göbbels e a Josef Stálin a maravilha tecnológica das plataformas de mídia social, com sua onipresença, seu modelo de negócios que favorece o extremismo e sua extraordinária resistência a qualquer forma de regulação (acreditou quem quis nos “acordos” das big techs com o TSE).

Como tantas outras, minha família e meu núcleo de amizades próximas foram esfacelados pelo bolsonarismo. Minha mulher não vai à casa dos meus pais desde o dia em que um parente declarou que “o erro da ditadura foi matar pouco”. Eu mesmo, amarrado pelo contrato genético, vivo um estado de dissociação cognitiva permanente todo almoço de domingo. É exaustivo e frustrante. E, sempre que o tema política aparece, alguém acaba aos berros; em geral sou eu.

Quem já tentou sabe que não existe argumentação racional possível com as vítimas do Sono Negro de Carlos. Mamãe odeia Lula e o PT, mas, quando tento inquirir-lhe os motivos, nada coerente aparece. Eu tenho motivo para odiar o PT: a campanha suja de Dilma Rousseff, bancada com dinheiro de corrupção, destruiu a candidatura que eu apoiava em 2014, a de Marina Silva – que tem motivo de sobra para odiar o PT. Geraldo Alckmin, que foi derrotado por Lula em 2006, tem motivo para odiar o PT. Fernando Henrique Cardoso, que passou duas décadas alternando o poder com Lula, tem motivo para odiar o PT. Joaquim Barbosa, que botou Zé Dirceu na cadeia, tem motivo para odiar o PT. Toda essa gente hoje está com Lula, mas para mamãe nada disso é relevante; o que importa são os empréstimos do BNDES para Cuba.

Tampouco resulta frutífero perguntar qual foi a grande realização do governo Bolsonaro que justificaria dar mais um mandato a um presidente que se notabilizou por não trabalhar. Nesses momentos a argumentação quebra e a resposta que se ouve é “eu sou liberal de direita”. O que também não justifica nada; liberais de direita são Simone Tebet e César Maia. Eles estão com Lula.

Após cinco anos de brigas, desespero e depressão, enfim encontrei a tocha de Short Round: “Então tá, faça o que quiser, mas saiba que seu voto terá acabado com a minha vida”.

Na hora ela me chamou de “paranoico”, mas desconfio de que alguma coisa tenha se mexido ali nos minutos seguintes. Sou ambientalista e dublê de jornalista, duas das categorias listadas pelo bolsonarismo como inimigas da pátria e às quais desde 2018 está reservado um quartinho na tal “ponta da praia”. O próprio Jair já chamou as ONGs que atuam na Amazônia de “câncer que eu não consigo matar”. Eu já tive colegas ameaçados de tiro em trabalho de campo, vitimados por reides policiais forjados, presos injustamente. Meu chefe sofreu uma intimidação judicial porque deu uma entrevista. Um amigo teve seu carro queimado na porta de casa por denunciar grileiros. Outro foi assassinado e teve seu corpo ocultado no meio da floresta. Talvez muita gente que vota no Jair sem simpatizar com o Ricardo Salles ache isso normal, a Amazônia é violenta mesmo. Estou nessa lida há mais de 20 anos e digo: não é. E todas essas coisas aconteceram antes de Bolsonaro ser reeleito, controlar o STF e botar pra ferver em cima da minha turma sem amarras, que é o que se desenha para a fase de ruptura democrática que se insinua. Mamãe sabe em algum lugar de sua mente que o bicho vai pegar pro meu lado. E enfim capitulou: “Por você eu fico em casa dia 30”.

Depois de passar 48 anos em Brasília sem transferir o título, minha mãe o fez este ano, e disse que iria votar no primeiro turno mesmo não sendo obrigada. Achei inusitado, mas foi só quando vi na TV o número recorde de idosos registrados para votar que associei o fato a uma estratégia do bolsonarismo para aumentar a própria base. Não tenho provas, mas tenho convicção, de que houve algum pedido coordenado no zap.

Talvez meu apelo tenha despertado nela o fator darwinista primordial: entre a segurança do próprio filho (e por tabela de três dos sete netos) e o ódio irracional a Lula ela tenha se decidido pela primeira. Se mamãe cumprir sua promessa, e não tenho razão para pensar outra coisa, Jair terá um voto a menos, e a democracia no Brasil, uma chance a mais de sobreviver. Caso Lula seja eleito  e eu não precise mais me preocupar em emigrar, minha família enfim terá uma chance de se refazer. Oxalá milhares de outras famílias brasileiras, com filhos e filhas jornalistas, professores, artistas, LGBTs e “comunistas” em geral possam ter essa mesma chance em 2023. Oxalá eu possa voltar a dizer para a minha mãe o que Short Round disse a Indiana Jones no Templo da Perdição.

Claudio Angelo

Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como Nature, Scientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

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