Flip 2022 | Leia um trecho de “Uma dor perfeita”, de Ricardo Lísias

21/11/2022

Entre 23 e 27 de novembro, a literatura volta a ocupar as ruas de Paraty em mais uma edição da Festa Literária Internacional da cidade fluminense, e a Companhia das Letras é presença confirmada nesta celebração. Leia um trecho de “Uma dor perfeita”, novo livro de Ricardo Lísias, autor convidado da Flip 2022.

 ***

Estou no pronto-socorro da uti-covid. São cinco cubículos de cada lado, com um corredor formado por computadores e carrinhos de enfermeiro parados por muito pouco tempo. Há uma tela maior e alguns aparelhos. O corredor se abre dos dois lados. À esquerda, uma porta de vidro leva a outro corredor, esse de fato cheio de gente, prateleiras, outros computadores e armários com isso e aquilo. Em uma das portas, a saída. À frente fica o banheiro. Como é uma uti improvisada, teremos apenas um chuveiro e uma privada para os dez pacientes.

A saída do lado oposto leva a alguns elevadores. Toda vez que a maca com um dos contaminados sobe ou desce, os enfermeiros travam o elevador, que será higienizado. É por isso que muitas vezes o transporte demora. Por esse corredor, passam tanto os pacientes contaminados pela covid que estão melhorando e vão para uma uti menos exigente, a semi-intensiva, quanto os que serão intubados. Do corredor com dez cubículos onde acabam de me internar, ninguém recebe alta e vai para casa. Esquece.

 

Meu filho não gosta de ficar no chão. Quando chega a um lugar desconhecido, olha as paredes em silêncio, faz alguns cálculos e procura reentrâncias, cantos estreitos e colunas que lhe permitam escalar. Se não der para chegar ao teto, ele tenta pelo menos o meio. Antes, obviamente pede permissão para os proprietários. Não se trata de nenhum tipo de exibicionismo: ele só quer explorar uma nova possibilidade.

Ele gosta também de subir em árvores, o que lhe exige bem menos cálculo. Já me disse, faz tempo, que adora escalar estátuas. No muro da parte de trás do condomínio, andou inúmeras vezes. Quando gritou na minha direção, avisando que iria atravessá-lo com um pé só, senti taquicardia. É bem diferente do que vivo agora: meu coração parece de outra pessoa.

Logo que o senhor mudo encaixou a cama no cubículo, pensei que meu filho chegaria ao teto com muita facilidade. No corredor do apartamento, são três pequenos saltos, apoiando os pés em cada uma das paredes, e ele espalma a mão lá em cima orgulhoso. Foi assim que gravou um vídeo para a professora, desejando que ela sarasse logo da covid. Na escola dele, todos os quatro professores se infectaram assim que permitiram a volta às aulas.

Fiz como meu filho e observei as paredes do cubículo. Não me lembro de ter olhado para o teto. O homem mudo já tinha ido embora. Uma enfermeira, cumprimentando-me, colocou seis eletrodos no meu peito (podem ter sido cinco), trocou rapidamente a saída de ar do balão para um canal atrás da maca e, num relance, fechou a cortina azul até pouco mais da metade. Por algum motivo estranho, deixei de ouvir o monte de ruídos que tomava conta do salão. O silêncio que me apareceu também era prateado. É preciso que esteja claro: uma prata muito polida.

Nas próximas quarenta e oito horas vou ter acessos constantes de febre alta e meu corpo, segundo as palavras da médica para a minha mulher, será mastigado pelo vírus. Sentirei dores muito fortes da cintura para baixo. Por enquanto, não estou vivendo nada disso. Falta algum tempo. Não vou dormir em momento algum.

Deve ser por volta de oito horas da noite do dia em que dei entrada na uti-covid. Na madrugada de sábado para domingo, daqui a quarenta e oito horas, todos os exames acusarão enorme piora no meu estado geral.

Estarei à beira de uma falência.

 

Por fim, sozinho e com a cortina fechada até a metade, o oxigênio em um fluxo constante e a camisola vestida, peguei o telefone celular. A primeira coisa que devo ter feito, não tem jeito de me lembrar, é visto as horas. Depois, olhei a bateria: metade, pelo menos. Então, outro susto fez de novo meu coração disparar. Uma comichão estranha subiu pelo meu corpo, seguida por um forte calafrio. Primeiro, achei que o cobertor tinha escorregado. Tentei me concentrar para ver se não havia apertado algum botão da cama. São inúmeros. Depois, notei que estava na mesma posição. O susto me causou outra crise de tos

Essa foi mais leve, ainda que muito prateada. Algo parecia estar me enredando. Ainda antes da crise que me levará a um colapso, daqui a quarenta e oito horas, um fluxo constante de suor passará a me incomodar. Embora jamais pare, ele terá momentos muito intensos e outros em que sentirei apenas uma umidade incômoda e malcheirosa por todo o corpo. Vou tentar todo tipo de defesa, inclusive uma vedação imaginária e muito frágil, que me trará alguma ilusão. Está começando agora.

Vai, película, cobre o meu corpo inteiro, até mesmo o braço com o telefone. Prende a minha cabeça ao pescoço e não deixa o resto do corpo solto. Película, assume seu espaço e me leva, cheio de tremor, para um lugar mais seco. Não mereço?

Havia centenas de ligações, mensagens de WhatsApp, e-mails e todo tipo de recado em redes sociais, na maioria absoluta dos casos de pessoas que não conheço ou muito distantes. Não paravam de chegar.

Demorei um pouco para compreender. Ouço um ruído e me apresso para deixar o telefone no mudo. A película não me envolveu. De novo, não escuto mais nada. A película talvez tenha ficado apenas até a cintura. Logo, sentirei uma dor violentíssima nessa região do corpo. A dor se manifesta em lugares diferentes de cada um dos infectados em estado grave. Minha cabeça, por exemplo, não doeu até agora.

Localizo minha mulher no WhatsApp. Há um recado meigo e outro do meu filho. Estou confuso e, para organizar um pouco a cabeça, respiro fundo. Não consigo e a falta de ar acaba me atrapalhando a vista. Tenho receio de não falar coisa com coisa. Mesmo assim, preciso me comunicar com eles. Com medo do meu coração disparar de novo, faço uma chamada de vídeo. Um erro. Ela atende sem demora e noto algo que me causa um leve calafrio. Faço força para conter um tremor mais forte. Se tossir, tudo desmorona. Os olhos da minha mulher estão feito pedra. Meu filho aparece atrás do ombro esquerdo dela, mas não consigo focalizá-lo. Eu nunca tinha visto minha mulher com os olhos daquele jeito.

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