Flip 2022 | Leia um trecho de “Úrsula”, de Maria Firmina dos Reis

21/11/2022

Entre 23 e 27 de novembro, a literatura volta a ocupar as ruas de Paraty em mais uma edição da Festa Literária Internacional da cidade fluminense, e a Companhia das Letras é presença confirmada nesta celebração. Leia um trecho de “Úrsula”, livro de Maria Firmina dos Reis, autora homenageada da Flip 2022.

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São vastos e belos os nossos campos; porque inundados pelas torrentes do inverno semelham o oceano em bonançosa calma — branco lençol de espuma, que não ergue marulhadas ondas, nem brame irado, ameaçando insano quebrar os limites, que lhe marcou a onipotente mão do rei da criação. Enrugada ligeiramente a superfície pelo manso correr da viração, frisadas as águas, aqui e ali, pelo volver rápido e fugitivo dos peixinhos, que mudamente se afagam, e que depois desaparecem para de novo voltarem — os campos são qual vasto deserto, majestoso e grande como o espaço, sublime como o infinito.

E a sua beleza é amena e doce, e o exíguo esquife, que vai cortando as suas águas hibernais mansas e quedas, e o homem, que sem custo o guia, e que sente vaga sensação de melancólico enlevo, desprende com mavioso acento um canto de harmoniosa saudade, despertado pela grandeza dessas águas, que sulca.

É às águas, e a esses vastíssimos campos que o homem oferece seus cânticos de amor? Não por certo. Esses hinos, cujos acentos perdem-se no espaço, são como notas de uma harpa eólia, arrancadas pelo roçar da brisa; ou como o sussurrar da folhagem em mata espessa. Esses carmes de amor e de saudade o homem os oferece a Deus.

Depois, mudou-se já a estação; as chuvas desapareceram, e aquele mar, que viste, desapareceu com elas, voltou às nuvens formando as chuvas do seguinte inverno, e o leito, que outrora fora seu, transformou-se em verde e úmido tapete, matizado pelas brilhantes e lindas flores tropicais, cuja fragrância arrouba e só tem por apreciador algum desgarrado viajor, e por afago a brisa que vem conversar com elas no cair da tarde — à hora derradeira do seu triste viver.

E altivas erguem-se milhares de carnaubeiras, que balançadas pelo soprar do vento recurvam seus leques em brandas ondulações.

Expande-se-nos o coração quando calcamos sob os pés a erva reverdecida, onde gota a gota o orvalho chora no correr da noite esse choro algente, que se pendura da folhinha trêmula, como a lágrima de uma virgem sedutora, e que, arrancada do coração pelo primeiro gemer da saudade se balança nos longos cílios. Depois vem a ardência do sol, e bebe o pranto noturno, e murcha a flor, que enfeitiçava a relva, porque o astro, que rege o dia, reassumiu toda a sua soberania; mas ainda assim os campos são belos e majestosos!

E desce depois o crepúsculo, e logo após a noite bela, e voluptuosa recamada de estrelas; ou prateada pela lua vagarosa e plácida, que lhe branqueia o tapete de relva, derramando suave claridade pelos leques recurvados dos palmares. Então um vago sentimento de amor, e de uma ventura, que muito longe lobrigamos, arrouba-nos a alma de celestes eflúvios, e doce esperança enche-nos o coração, outrora mirrado e frio pela descrença, ou pelo ceticismo.

Quem haverá aí que se não sinta transportado ao lançar a vista por esses vastos páramos ao alvorecer do dia, ou ao arrebol da tarde, e não se deixe levar por um deleitoso cismar, como o que escuta o gemer da onda sobre areais de prata, ou o canto matutino de uma ave melodiosa!!… A vista expande-se e deleita-se, e o coração volve-se a Deus, e curva-se em respeitosa veneração; porque aí está Ele.

O campo, o mar, a abóbada celeste ensinam a adorar o supremo Autor da natureza, e a bendizer-lhe a mão; porque é generosa, sábia e previdente.

Eu amo a solidão; porque a voz do Senhor aí impera; porque aí despe-se-nos o coração do orgulho da sociedade, que o embota, que o apodrece, e livre dessa vergonhosa cadeia, volve a Deus e o busca — e o encontra; porque com o dom da ubiquidade Ele aí está!

Entretanto em uma risonha manhã de agosto, em que a natureza era toda galas, em que as flores eram mais belas, em que a vida era mais sedutora — porque toda respirava amor —, em que a erva era mais viçosa e rociada, em que as carnaubeiras, outras tantas atalaias ali dispostas pela natureza, mais altivas, e mais belas se ostentavam, em que o axixá com seus frutos imitando purpúreas estrelas esmaltava a paisagem, um jovem cavaleiro melancólico, e como que exausto de vontade, atravessando porção de um majestoso campo, que se dilata nas planuras de uma das nossas melhores, e mais ricas províncias do norte, deixava-se levar através dele por um alvo e indolente ginete. Longo devia ser o espaço que havia percorrido; porque o pobre animal, desalentado, mal cadenciava os pesados passos.

Abstrato, ou como que mergulhado em penosa e profunda meditação, o cavaleiro prosseguia sem notar a extrema prostração do animal ou então fazia semblante de a não reparar; porque lhe não excitava os nobres estímulos. Dir-se-ia ter já concluído sua longa jornada.

Mas quem sabe?!… Talvez uma ideia única, uma recordação pungente, funda, amarga como a desesperação de um amor traído, lhe absorvesse nessa hora todos os pensamentos. Talvez. Porque não havia o menor sinal de que observasse o espetáculo que o circundava.

Que intensa agonia, ou que dor íntima lhe iria lá pelos abismos da alma?! Só Deus o sabe!

Prosseguia em tanto a marcha, e sempre abstrato, sempre vagaroso. Curvada a fronte sobre o peito, o mancebo meditava profundamente, e grande, e poderoso devia ser o objeto de seu aturado meditar. Arfava-lhe o peito sobre o qual descansava essa fronte acabrunhada, que parecia tão nobre e altiva? Quem o poderia dizer ao certo?

O mancebo ocultava parte de suas formas num amplo capote de lã, cujas dobras apenas descobriam-lhe as mãos cuidadosamente calçadas com luvas de camurça. Numa destas mãos o jovem cavaleiro reclinara a face pálida e melancólica, com a outra frouxamente tomava as rédeas ao seu ginete. Mas este simples traje, este como que abandono de si próprio, não podia arredar do desconhecido certo ar de perfeita distinção que bem dava a conhecer que era ele pessoa da alta sociedade.

De repente o cavalo, baldo de vigor, em uma das cavidades onde o terreno se acidentava mais, mal podendo conter-se pelo langor dos seus lassos membros, distendeu as pernas, dilatou o pescoço, e dando uma volta sobre si, caiu redondamente. O choque era demais violento para não despertar o meditabundo viajor: quis ainda evitar a queda: mas era tarde, e de envolta com o animal rolou no chão.

Houvera mais que descuido no incerto e indolente viajar desse singular desconhecido: não previa ele um acontecimento fatal nessa divagação de tanto abandono, de tão grande desleixo? E malgrado o langor do cavalo, sempre a prosseguir, cada vez mais submerso em seu melancólico cismar! Caiu, e de um jato perdeu o sentimento da própria vida; porque a queda lhe ofendeu o crânio, e aturdido, e maltratado desmaiou completamente. Para mais desastre o pobre animal no último arranco do existir, distendendo as pernas, foi comprimir acerbamente o pé direito do mancebo, que inerte e imóvel, como se fora frio cadáver, nenhuma resistência lhe opôs.

Era apenas o alvorecer do dia, ainda as aves entoavam seus meigos cantos de arrebatadora melodia, ainda a viração era tênue e mansa, ainda a flor desabrochada apenas não sentira a tépida e vivificadora ação do astro do dia, que sempre amante, mas sempre ingrato, desdenhoso, e cruel afaga-a, bebe-lhe o perfume, e depois deixa-a murchar, e desfolhar-se, sem ao menos dar-lhe uma lágrima de saudade!… Oh! O sol é como o homem maligno e perverso, que bafeja com hálito impuro a donzela desvalida, e foge, e deixa-a entregue à vergonha, à desesperação, à morte! — e depois, ri-se e busca outra, e mais outra vítima!

A donzela e a flor choram em silêncio, e o seu choro ninguém o compreende!…

Era apenas o alvorecer do dia, dissemos nós, e esse dia era belo como soem ser os do nosso clima equatorial onde a luz se derrama a flux — brilhante, pura e intensa.

Vastos currais de gado por ali havia; mas tão desertos a essa hora matutina, que nenhuma esperança havia de que alguém socorresse o jovem cavaleiro, que acabava de desmaiar. E o sol já mais brilhante, e mais ardente e abrasador, subia pressuroso a eterna escadaria do seu trono de luz, e dardejava seus raios sobre o infeliz mancebo!

Nesse comenos alguém despontou longe, e como se fora um ponto negro no extremo horizonte. Esse alguém, que pouco e pouco avultava, era um homem, e mais tarde suas formas já melhor se distinguiam. Trazia ele um quer que era que de longe mal se conhecia, e que descansando sobre um dos ombros, obrigava-o a reclinar a cabeça para o lado oposto. Todavia, essa carga era bastantemente leve — um cântaro ou uma bilha; o homem ia sem dúvida em demanda de alguma fonte.

Caminhava com cuidado, e parecia bastante familiarizado com o lugar cheio de barrocais, e ainda mais com o calor do dia em pino, porque caminhava tranquilo.

E mais e mais se aproximava ele do cavaleiro desmaiado; porque seus passos para ali se dirigiam, como se a Providência os guiasse. Ao endireitar-se para um bosque à cata sem dúvida da fonte que procurava, seus olhos se fixaram sobre aquele triste espetáculo.

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