Flip 2022 | Leia um trecho de “O sequestro da Independência”, de Carlos Lima Jr., Lilia Moritz Schwarcz e Lúcia K. Stumpf

23/11/2022

Entre 23 e 27 de novembro, a literatura volta a ocupar as ruas de Paraty em mais uma edição da Festa Literária Internacional da cidade fluminense, e a Companhia das Letras é presença confirmada nesta celebração. Leia um trecho de “O sequestro da Independência”, livro de Carlos Lima Jr., Lilia Moritz Schwarcz e Lúcia K. Stumpf. Na Flip 2022, Lilia M. Schwarcz participa da mesa Minha liberdade.

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Não é difícil transformar em imagens a letra do Hino Nacional e associá-la, de imediato, ao quadro “Independência ou morte!” de Pedro Américo, pintado em 1888, e até hoje presente no imaginário nacional, como se fosse um retrato fidedigno, um testemunho do evento de emancipação — sua carteira de identidade. Nele, um d. Pedro i eternamente jovem aparece de maneira romantizada em cima de um cavalo e, de espada em punho, dá o “grito” de liberdade — tudo às margens do Ipiranga, na então pacata província de São Paulo.

A cena é, por sua vez, inspirada na tela do pintor francês Jean-Louis Ernest Meissonier, 1807, Friedland, concluída em 1875, e que evoca uma das maiores vitórias militares comandadas por Napoleão Bonaparte. A referência direta aumentava, ainda mais, o valor moral da pintura, ao comparar o príncipe português ao imperador francês. Afinal, conforme prática da época, a “citação” de outra obra apenas elevava a pintura de Américo. No caso da tela brasileira, sai o general corso; entra d. Pedro na mesma posição ereta e altiva, imortalizada pela ação do tempo.

Além do mais, com o objetivo de elevar o herói, o artista “castiga”, propositada e abertamente, a geografia, e desloca um acanhado “riacho” do Ipiranga, onde os cavalos pisoteiam a água, para junto da colina apenas tênue que podia ser divisada na região. Já o primeiro imperador do Brasil, até ali príncipe regente, surge imóvel, tal qual estátua equestre, fazendo jus ao cânone da pintura de história que era, então, produzida na Academia de Belas Artes, a qual imortaliza seus personagens dando a eles aspectos etéreos.

A veracidade do evento, recriado em pintura, seria questionada pelos documentos e pelo próprio artista que legou um livro a respeito de sua obra. Essas fontes permitem descrever um d. Pedro em tudo diferente daquele paramentado com os símbolos da realeza, pois achava-se em viagem prolongada e vinha de um encontro pouco oficial. Tampouco estaria montado num fogoso cavalo, uma vez que grandes distâncias eram vencidas em lombo de burro ou mula. Os supostos “grosseiros anacronismos” cometidos pelo artista não teriam passado despercebidos a um crítico da época — Félix Ferreira, que destacou uma série de incongruências na tela. Já Américo escreveu um livro, publicado no ano da inauguração do quadro, em que se justificava, visando não só defender-se de possíveis ataques da crítica, como também explicar suas escolhas na representação da cena do Grito. Como ele mesmo definiria em frase célebre: “A realidade inspira, e não escraviza o pintor”.

Mesmo o momento político que a tela eleva, demorou para ser oficializado como marco da Independência. Afinal, a essa altura a província de São Paulo era pouco conhecida nacionalmente, e o objetivo da visita de d. Pedro, controverso. De um lado, a missão pretendia apaziguar os ânimos da sublevação designada como a Bernarda de Francisco Inácio; uma rebelião associada a movimentos separatistas em terras paulistas. Por outro lado, a viagem, que tinha propósitos políticos, ganhou contornos bem mais mundanos. Foi durante sua estadia na província que d. Pedro começou um caso amoroso com d. Domitila de Castro Canto e Melo, a futura marquesa de Santos. Domitila nascera em São Paulo, era quase um ano mais velha que o príncipe e amargava as consequências de um casamento frustrado a que se referia como “estreitezas de seu meio provinciano”. Andava realmente sofrendo com as dificuldades que o marido vinha lhe impondo: acusada de adultério, tinha a guarda de seus três filhos reclamada. Foi no caminho de volta para a capital que o príncipe regente se encontrou com a amada e acabou por fazer uma parada em Santos maior que a prevista nos planos iniciais. Prova disso é que até mesmo a guarda especial de trinta homens havia sido dispensada nessa ocasião e não estava toda reunida, diferentemente do que ilustra o quadro de Américo.

Há muito disse que disse nessa história, mas a versão oficial é que o filho de d. João voltava de Santos acompanhado de uma tropa reduzida quando foi interceptado pelos correios vindos do Rio de Janeiro, que portavam duas cartas: uma do conselheiro José Bonifácio e outra da esposa de Pedro, d. Maria Leopoldina, ambas aconselhando o rompimento definitivo com Portugal.

Vale a pena lembrar que, nesse momento, a separação política estava praticamente acertada. Tanto que, logo após o dia 14 de agosto, quando o príncipe partiu em viagem, José Bonifácio emitiu circular ao corpo diplomático declarando a urgência da emancipação. Faltava, porém, não só o estopim, como um evento que conferisse ao galante d. Pedro o lugar principal na cena e atiçasse a imaginação da população. Conta uma historiografia mais imperial que o primeiro veio no dia 28 de agosto de 1822, quando chegou ao Rio de Janeiro o brigue Três Corações, trazendo más notícias de Lisboa: as Cortes ordenavam o retorno imediato do regente e o fim de uma série de medidas consideradas “privilégios brasileiros”, bem como acusavam de traição os ministros que cercavam d. Pedro. Lisboa de fato jogava na base do tudo ou nada.

Nessa narrativa de nítido feitio romântico, conta-se que, enquanto o príncipe retornava cumprindo com vagar a distância que separava Santos da capital, no Rio de Janeiro a temperatura política subia rapidamente, com as notícias se espalhando ligeiras. Entretanto, como fatos políticos não batem na porta nem aguardam pacientes por resposta, as duas missivas encontraram o regente num estado de saúde instável que, embora não apresentasse maior gravidade, causava desconforto. As funções intestinais do marido de d. Leopoldina andavam perturbadas, e de forma intermitente ele era obrigado a apartar-se da comitiva, alterar o ritmo da marcha, e parar a fim de aliviar uma dor repentina. O depoimento emitido por um dos companheiros de viagem, o coronel Manuel de Oliveira e Melo, usa de claro eufemismo para descrever a situação. Diz ele que d. Pedro a todo momento saltava da montaria “para prover-se”. De real no hino ou no quadro, portanto, apenas as águas do Ipiranga — que também foram devidamente manipuladas pelo pintor para entrarem na fatura da obra, logo em sua base, no primeiro plano.

A pintura de Pedro Américo seria, assim, no mínimo prosaica, se não fosse intencionalmente criada pelo artista segundo os cânones acadêmicos, construída com a função de unificar sentimentos — negar as divisões, dissolver conflitos e amplificar uma cena mundana transformando-a em triunfal — e, nesse sentido, não ficava bem denotar contradição alguma. Mas, como veremos quando analisarmos a tela com maior atenção, em seus detalhes é possível entrever que o artista deixou na composição alguns “ruídos”, os quais, todavia, podem passar despercebidos mesmo diante de sua alta circulação. Podemos dizer que O Brado do Ipiranga é um quadro que, apesar de se reportar a um tema do passado, está carregado das tensões do momento em que foi pintado: os debates acirrados sobre o fim da escravidão e as questões que permearam o desfecho do Império e a implantação da República.

Como uma espécie de pintor-historiador, Américo pesquisou com afinco vestimentas, uniformes de época, a topografia do Ipiranga; realizou estudos preparatórios do céu de São Paulo; analisou a historiografia dedicada ao tema da Independência; e entrevistou testemunhas oculares que estiveram com o príncipe na “tarde memorável” do Sete de Setembro de 1822. Além disso, observou gestos, e recorreu a outras pinturas do passado e contemporâneas que pudessem inspirá-lo na fabricação do “fato histórico”. Não obstante todo esse esforço, o quadro não pode ser entendido como um duplo do real, tampouco como imagem fidedigna da cena ocorrida 66 anos antes de o artista empunhar seus pincéis e paleta e aventurar-se em retratar o Grito do Ipiranga. Pelo contrário. O quadro foi fruto de negociações com o comitente da obra — a Comissão de Obras do Monumento do Ipiranga, responsável pela construção do palácio no Ipiranga que abrigaria a pintura — e com o Império, bem como resultado das soluções visuais encontradas pelo próprio artista.

Américo, portanto, idealizou a cena que se passou às margens do Ipiranga, no sítio histórico louvado pelo Monumento. E não o ato de emancipação que se deu apenas no dia 12 de outubro, no Rio de Janeiro, e que entrou na história como a Aclamação da Independência, como veremos mais adiante. Material para uma pintura de história sobre esse evento não faltaria. Afinal, houve na capital todo tipo de demonstração de “eficácia ritual”: desfiles, acenos na varanda especialmente criada para a ocasião, Te Deum na capital imperial, beija-mão, teatros, touradas, danças, bailes, banquetes, pantomimas e muitos outros divertimentos que chamaram a atenção da população para a efetiva emancipação política em relação a Portugal.

A encomenda era, entretanto, outra — visava elevar o pai de d. Pedro II, além do próprio sítio histórico, em São Paulo, e o pintor voltou sua atenção para imortalizar esse episódio em específico. O ambiente era propício, e era possível tomar o regente em posição que já dignificara outros dirigentes europeus. O primeiro projeto, que incluía pessoas negras como protagonistas da Independência, também não passaria pelo crivo da Comissão, que preferiu uma versão mais “bem-comportada”, e que não abarcasse a temática racial — a grande contradição e trauma do nosso país. De toda maneira, descontados os excessos imaginativos e as oscilações quanto à cena imortalizada, a pintura tinha tudo para agradar: grandiosidade, técnica, impacto, dimensões e autoria. Afinal, a essa altura, Pedro Américo era um dos protegidos do imperador, e devia a ele sua especialização e viagens ao exterior.

Mas o destino de vez em quando apronta poucas e boas. A tela seria mostrada, em 1888, apenas para uma seleta audiência europeia, reunida em Florença, onde ficava o estúdio de Américo. Como d. Pedro ii não podia saber que o Império tinha, naquele momento, seus dias contados, ele apoiou um projeto que pretendia afirmar a força do sistema imperial, a partir da exposição da figura imaculada do pai — a despeito de a historiografia oficial insistir na “renúncia” de d. Pedro i, ele deixara o Brasil com fama de autoritário e daquele que impôs uma Constituição e dissolveu a Assembleia. Porém, aquele seria o último ano da monarquia, e a vida da bela cena patriótica parecia destinada ao fracasso. O quadro acabou embrulhado numa sala da Faculdade de Direito de São Paulo, e assim permaneceu até os idos de 1895 — com um breve intercurso na Exposição Colombiana de Chicago de 1893 —, quando foi finalmente inaugurado e apresentado ao público brasileiro, no Museu do Ipiranga, onde se encontra até hoje.

Em tempos republicanos, a obra ganharia, contudo, novos significados, destinos e tradução. Quando exposta ao público, foi inaugurada como um monumento em homenagem a São Paulo em sua pujança e predestinação — como se houvesse algo no passado que iluminasse o presente. D. Pedro i virava, pois, “cultor” da brava gente paulista, representada pelo carreiro de boi, o caipira — o personagem “do povo” presente na tela.

Mas as novas interpretações acerca da obra não parariam por aí. Com o Centenário da Independência, a pintura seria reproduzida em diversos suportes visuais, de fotografias a gravuras, e objetos de uso cotidiano, o que potencializou sua associação direta com a imagem oficial da proclamação da Independência. Outras pinturas históricas foram produzidas para o certame de 1922, tanto em São Paulo, destinadas ao Museu Paulista, como no Rio de Janeiro, incorporadas ao recém-criado Museu Histórico Nacional. Os dois estados da federação passaram a disputar, então, o protagonismo pela Independência, e mais uma vez as artes visuais tiveram papel decisivo para emplacar narrativas vitoriosas sobre o passado nacional.

A pintura de Pedro Américo seria novamente relida no aniversário de 150 anos da Independência, em 1972, em plena ditadura militar. Nesse contexto, ela foi impressa em selos e em outros emblemas nacionalistas, e vista como um feito militar liderado por um d. Pedro i fardado e com uniforme do Exército. Naquele período de acirramento da repressão, o trabalho ajudou a divulgar um novo projeto de passado: um passado fardado. Se em 1921 os restos mortais de d. Pedro II deixavam o mosteiro de São Vicente de Fora, em Portugal, e retornavam ao Rio de Janeiro32 por iniciativa de Epitácio Pessoa, o presidente que levou a cabo os festejos de 1922 e com eles tentou desviar a atenção das greves operárias que estouravam por toda parte; para o Sesquicentenário, seriam os restos mortais de d. Pedro i que voltariam ao Brasil: espécie de presente do governo ditatorial português, na figura de Américo Tomás, ao brasileiro, que estava sob a condução do violento general Emílio Garrastazu Médici.

Para além do quadro de Américo, proliferaram novas imagens sobre um d. Pedro I militar — seja em relação ao cortejo com o caixão do imperador que passou pelas principais capitais do país antes de atingir a colina do Ipiranga no dia 7 de setembro, seja na distribuição de bustos com a efígie do “proclamador” em sua versão militarizada, ofertados pelo governo federal, para decorar espaços públicos dessas capitais. Recorria-se, assim, às artes para fazer uso de um certo passado, edulcorado e destituído de contradições. Nada mais coerente com o contexto que vivia o Brasil, em que a dissidência era esmagada na base da tortura, do silenciamento e da morte.

Desse modo, o hino e a pintura de Américo parecem, ainda hoje, harmoniosamente coincidir, encobrindo outras narrativas possíveis sobre a Independência do Brasil, não apenas aquelas centradas nos eventos que ocorreram na região Sudeste, mas as que dizem respeito a outras realidades nacionais. “Outras independências”, conforme escreveu o historiador Evaldo Cabral de Mello. Nesse sentido, para além de buscar entender os caminhos nada óbvios que alçaram a pintura de Pedro Américo a símbolo inconteste da Independência do Brasil, este livro se debruça sobre outras imagens — menos conhecidas mas igualmente disponíveis nos mais diversos suportes, como gravuras, esculturas, monumentos, ilustrações, moedas, e tantos mais — com o objetivo de demonstrar como foi (e continua sendo) complexa essa construção da visualidade da Independência. Até porque a fabricação do Sete de Setembro como ato inaugural do Brasil independente consistiu numa operação arquitetada a partir de circunstâncias que faziam de São Paulo o centro nevrálgico da política nacional, já em finais do século XIX e inícios do XX. Para elevar o gesto realizado no Ipiranga, ocultou-se uma série de eventos anteriores e posteriores a 1822 e que compõem o processo de Independência, muito mais longo e multifacetado que a exclusiva projeção do grito “Independência ou morte!” às margens do riacho.

Este livro se propõe a fazer, portanto, uma história a “contrapelo” desses mitos fundadores da nacionalidade, que vêm sendo vagarosamente elaborados, e num crescente, desde o século XIX até o momento atual. Será preciso, pois, ouvir os disparos dos canhões ressoando no Maranhão, ainda em 1825; dar importância à insurgência ocorrida na Bahia até 1823; lamentar as mortes em campo de batalha no Piauí e na Cisplatina, estranhar como demorou a vingar a versão de que a Independência ocorrera de fato no Ipiranga, e assim narrar outra história, que não apaga conflitos e traumas, mas os ilumina. E que anota e dá valor à emergência de outras identidades e subalternidades que se apresentam e insurgem nesse momento. Identidades que se formam na e a partir da diferença que reivindicam.

Pensando-se nesses termos, o que aconteceu em São Paulo foi antes ponto de partida ou de meada, mas não de chegada, desse longo caminho que culmina na separação política entre Brasil e Portugal e na construção de uma autonomia de direito e também de fato. O que o quadro de Pedro Américo parece assim ocultar são as tantas outras interpretações visuais possíveis sobre a Independência; inclusive de protagonistas que não foram alçados, em retratos e bustos, ao panteão de heróis — formado, em sua grande maioria, por homens brancos e provenientes das elites brasileiras. Tornando-se a imagem oficial da emancipação, a obra participou da deslegitimização de outros movimentos que fizeram igualmente parte do processo de ruptura com Portugal. Foram muitos os “gritos” proferidos por negros e indígenas que compuseram os batalhões, por mulheres que também pegaram em armas, em diferentes localidades do vasto território nacional, em prol da independência política do Brasil.

Como escreveu o historiador haitiano Michel Trouillot, a história é mestra em produzir eventos que não podem ser sequer mencionados; são impronunciáveis. Por sua vez, desmontar artifícios e denunciar “esquecimentos” é uma maneira não só de contar de novo, como de contar diferente — a partir de hiatos e silenciamentos deixados de lado de modo proposital. Narrar é uma forma de fazer reviver os mortos, afirma Saidiya Hartman, tratando do poder curativo da memória e de nossa capacidade de lembrar. Um dos objetivos deste livro é, portanto, contribuir para que possamos incluir nas nossas narrativas — escritas e visuais — outros atores históricos, em geral ignorados pelos nossos manuais, livros didáticos e compêndios, excluídos que são das imagens oficiais do país. É um convite para investir em histórias menos coloniais e “bem-comportadas”. Histórias que digam respeito a um passado em litígio e que precisa ser enfrentado.

O sequestro da Independência pretende, assim, dar atenção aos símbolos pátrios, em lugar de tomá-los como meros adereços. Inquirir não apenas sobre “a eficácia simbólica do poder político”, retomando a máxima do filósofo Émile Durkheim, como também acerca da “eficácia política do poder simbólico”.38Imagem não é ilustração ou objeto de decoração. Como mostra Ariella Azou-lay, imagens se comportam muitas vezes como “sentinelas” que pretendem “guardar” intocada uma determinada versão colonial da história. Uma “história potencial”, nos termos da autora, é aquela que não descura de ler imagens por vezes violentas nos segredos que retêm consigo. Mas as interroga: desmonta os liames do encantamento.

Aqui intentamos comprovar como uma pintura foi capaz, em épocas subsequentes, de produzir uma verdadeira política de “sequestros da Independência”: um sequestro sudestino, depois um sequestro paulista e depois, ainda, um sequestro militar. Finalmente, um sequestro da nossa imaginação, até agora tão europeia, branca, masculina e colonial.

 

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